RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Uma mulher perde o emprego e decide deixar 27 gatos para trás em um apartamento. Em outra família, os filhos querem que os pais se desfaçam de um cachorro por medo que o bicho contamine os humanos da casa com a Covid-19. Já seis cavalos são abandonados à própria sorte em um mesmo domingo. E onze filhotes de um coelho de estimação iam para a panela por falta de recursos financeiros para sustentá-los.
Os relatos são verdadeiros, de diferentes ONGs espalhadas pelo Brasil, e mostram um retrato que se intensificou durante a pandemia do novo coronavírus: o abandono animal e os maus-tratos. Justificativas como desemprego, diminuição da renda, mudança de casa por conta da pandemia, término do casamento causado pelo distanciamento social e até medo de contrair o novo coronavírus dos bichos são justificativas das pessoas.
Não existem dados oficiais sobre o abandono no Brasil, mas ONGs e instituições ouvidas pela reportagem têm registros parecidos durante a pandemia e apontam para um aumento de até seis vezes no número de abandonos. Que não se resumem a cachorros e gatos, mas também a outros bichos, como cavalos e coelhos.
No Distrito Federal, a Associação Protetora dos Animais, ProAnima, registrou nos últimos três mses um crescimento de 60% na quantidade de pessoas que querem se desfazer dos seus próprios bichos de estimação. A organização acredita que o distanciamento social, que motivou as pessoas a se isolarem em casa, contribuiu para esse cenário.
"Achamos que é porque todos os familiares estão em casa, em ambiente antes tranquilo e que passou a ser difícil de suportar, e culpam os bichos, e o que percebemos é que o animal muda de comportamento quando o ritmo da casa muda", apontou Mara Moscoso, 50, diretora da ProAnima.
Mara aponta que tem recebido aumento nos relatos de maus tratos durante o distanciamento social, principalmente em famílias com histórico de violência doméstica. Também surgiram denúncias de pessoas que querem se livrar dos bichos por medo de que os mesmos passem Covid-19 aos parentes.
"As pessoas querem que idosos se desfaçam de animais, pois como a Covid começou na China por algum animal, acham que gatos e cachorros transmitem. Também tinha gente passando álcool em gel nos cachorros. Pedimos até para o nosso veterinário e um infectologista fazerem um vídeo explicando que não existe trabalho científico no mundo que comprove que cão e gato passaram Covid para humanos", disse Mara.
Além disso, mudou também a justificativa e forma como os donos procuram a instituição. Em um cenário normal, quase 100% deles são demovidos da ideia pela ONG. Durante a pandemia, porém, os proprietários de animais procuram a ProAnima decididos a se desfazerem dos bichinhos. "É uma imposição, que se não pegarmos os bichos, vão jogar na rua".
A Associação Brasileira Protetora dos Animais da Bahia apontou que quase todos os dias ninhadas são largadas no abrigo. "Os animais são abandonados debilitados, com pulgas e carrapatos, verminoses e anêmicos, com problemas de pele e desnutrição. Se forem idosos, são entregues com doenças crônicas", disse Alexandre Costa, coordenador da ONG.
No Rio de Janeiro, o Garra Animal, que cuida de 350 bichos calcula que o número de pedidos por socorro diários cresceu de 170 a mais de 700. Só neste domingo (21) foram seis cavalos abandonados, algo incomum em dias normais. A instituição é a única local que trabalha com resgate desse animal.
"É praticamente impossível atender todos os pedidos de ajuda. No início da pandemia, tivemos um aumento na quantidade de adoções. Mas esse número foi caindo, as pessoas vão ficando mais receosas, a crise vai chegando e aí temos visto um número muito maior de abandonos, e a quantidade de filhotes nascendo é assustadora", disse Renata Prieto, 48, fundadora e presidente do Garra.
A instituição existe como ONG há dois anos e foi fundada quando Renata descobriu um câncer. Ela dirige o local em parceria da esposa Cristiane Cruz, 39, mas vem passando dificuldades desde o começo da pandemia. Nesse mês, os gastos de R$ 54 mil mensais com os bichos não conseguiram arrecadar nem metade do que era necessário.
"Os últimos dois meses foram assustadores, ao ponto do medo começar a tomar conta e a gente ver que se as coisas não melhorarem, podemos até fechar as portas", lamentou Renata.
Segundo o Instituto Pet Brasil (IPB), a população pet no Brasil é de cerca de 140 milhões de animais, entre cães, gatos, peixes, aves e répteis e pequenos mamíferos. A maioria é de cachorros, com 54,2 milhões de bichos, e gatos, com 23,9 milhões). Desses, 3.9 milhões - 2,7 milhões de cães e 1,2 milhões de gatos - estão em condição de vulnerabilidade, vivendo sob tutela de famílias abaixo da linha de pobreza ounas ruas, mas recebendo cuidados de pessoas.
Marlice Dias Parizzi, 62, da ONG Mude, no município de Cachoeira de Macacu, interior do Rio, recebeu um pedido para resgatar 11 coelhos domésticos que iam virar almoço de vizinhos, já que o dono ficou desempregado e não tinha dinheiro para cuidar dos animais desde que a mãe dos bichos deu cria. Os coelhos, criados em uma comunidade de Cosmos, zona oeste do Rio, eram um exemplo de bichos em condição de vulnerabilidade. "Meu lance é cachorro e gato, mas para salvá-los da panela, peguei os coelhos", disse Marlice.
O abandono e maus tratos a animais são considerados crimes, com pena de detenção de três meses a um ano. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública criou a Delegacia Eletrônica de Proteção Animal (Depa), em 2016, que possibilita à população denunciar atos dessa natureza pela internet. Nos quatro primeiros meses de 2020 foram registradas 4.524 denúncias, 10,1% a mais do que as 4.108 denúncias do mesmo período do ano passado.
Na cidade do Rio de Janeiro, o disque denúncia recebeu desde janeiro 1.473 chamados por maus-tratos ou abandonos de animais, segundo a Subsecretaria de Bem Estar Animal. O órgão sentiu principalmente a ausência das feiras de adoção que eram realizadas diariamente nos centros de zoonose, que pararam de ter procura por parte das pessoas. Antes da Covid-19, existia uma frequência média de até 30 adoções por mês.
"Logo no começo [da pandemia], tentamos colocar os animais nas unidades para adotar, mas era um desgaste para eles ficarem no cercadinho e não teve nenhuma procura. Além do abandono, então, paralisou a nossa feirinha pela falta de procura das pessoas. O impacto foi grande", apontou Marcia Rolim, subsecretaria de Vigilância Sanitária e Controle de Zoonoses.
Como alternativa, o órgão passou a realizar feiras virtuais de adoção, que por enquanto vêm dando retorno. Em junho, 31 animais ganharam novos donos. As unidades de zoonose do Rio possuem ainda mais de 200 outros bichos, entre eles os chamados "especiais", que foram vítima de maus-tratos, atropelamentos ou coisas do tipo e passaram por cirurgia para amputação de algum membro ou retirada do globo ocular.
O Centro de Proteção Animal Fazenda Modelo, único abrigo público de animais do Rio, abriga cerca de 900 bichos, todos oriundos de abandono e maus-tratos. Com as feiras de adoção suspensas durante a pandemia, o número de bichinhos chegou a 987, sobrecarregando o espaço. "Não temos mais onde abrigar tantos animais", diz o vereador Luiz Carlos Ramos Filho (PMN-RJ). Ele sugeriu o projeto "castramóvel", veículo que nesta semana começou a promover a castração dos animais.
De acordo com a Comissão de Defesa dos Animais da Câmara de Vereadores do Rio, entre abril e maio, meses que o país mais sentiu o novo coronavírus, foram 1.809 denúncias de abandonos, seis vezes mais do que no mesmo período do ano passado, com 318. Em março, no primeiro com medidas de distanciamento social aplicadas no Rio em todo o Brasil, o aumento já havia sido de 159 em 2019 para 534 neste ano.
Presidente da comissão, Luiz Carlos Ramos Filho culpa a crise econômica causada pela pandemia como um dos fatores para o aumento. "Muita gente ficou desempregada. Não justifica, mas é um fato. A pessoa entra em contato e fala que perdeu o emprego, que a família inteira perdeu o emprego, entram em desespero e querem abandonar ou doar os bichos porque não tem mais como alimentá-los", apontou.
A justificativa vem se repetindo pelas ONGs. "Hoje mesmo uma senhora me ligou dizendo que estava sem receber salário há dois meses, não tinha dinheiro para alimentar animais e ia ter que colocar na rua para que eles tentassem conseguir comida", relatou Renata, do Garra.
De fato, o desemprego vem aumentando durante a pandemia. Um levantamento inédito do IBGE identificou que o novo coronavírus fez com que 1 milhão de brasileiros perdessem emprego ao longo de maio. A Covid-19 também afastou 14,6 milhões de pessoas do trabalho. No trimestre encerrado em abril, 4,9 milhões de postos de trabalho já haviam sido fechados, segundo dados da Pnad Contínua.
Perla Poltronieri, fundadora e presidente da ONG Catland, instituição em São Paulo que trabalha com mais de 300 gatos, também relatou o mesmo motivo dado por pessoas para alegarem motivos plausíveis para largarem os bichinhos para trás. A organização recebe em média 500 emails por semana com casos de abandono.
"A quantidade de abandonos aumentou muito. Os bichos são deixados em cemitérios, porta de abrigos ou na própria casa da pessoa. Atendemos um caso de 27 gatos, que a pessoa simplesmente foi embora e os deixou. São muitos animais abandonados, têm sido absurdo", apontou Perla.
Os abandonos vêm sendo tantos que, em junho, a Catland já recebeu a cota de pedidos de resgate esperada até o fim de 2020. A organização trabalha com um número prévio de vacinas para distribuir entre os bichos que são largados, e já gastou todo o recurso guardado para durar até o começo do ano que vem.
A quantidade de denúncias de abandonos já superou em 15% o mesmo número recebido em 2019.
Por outro lado, a quantidade de gatos que ganhou um novo lar também aumentou. A Catland estima que tem doado em torno de 140 gatos por mês, o dobro do que ocorria normalmente, em média. "A ONG dobrou e conseguimos abrigar mais. Muito mais gente está procurando gatos para adotar, dobramos a quantidade de adoções, esse contraponto está viabilizando a quantidade de resgates, mas o abandono está gigantesco", relatou Perla.
O mesmo comportamento ocorre no Distrito Federal. "Antes, a maioria das pessoas nos procurava para adotar cachorro. Agora, 60% dos pedidos são por gatos. Em outras instituições, isso também foi observado", disse Mara, da ProAnima. "A pessoa se sente sozinha, quer adotar um animal e pensa que gato dá menos trabalho. Mas e depois da pandemia, como será? Algumas adoções são negadas, temos um processo rígido nesse sentido", completou.
Uma das pessoas que adotou um gato na pandemia foi o empresário Victor Cipriano, 30. Morador de São Paulo, ele vive sozinho em um apartamento no Morumbi e adotou dois bichinhos desde que o distanciamento começou. Ele aponta que, hoje, os animais são parte de sua família.
"Comecei a morar sozinho um pouco antes da pandemia, morava antes com amigo, e nesse momento foi uma mudança em que tive a possibilidade de ter um animal, cresci com a minha família tendo animais, cachorro, peixe. E ter cachorro exigiria mais, conversando com algumas pessoas que já têm gato dizem que é independente e se conseguiria domesticar de uma forma mais tranquila. E foi uma surpresa boa", disse o empresário.
Em São Paulo, são aproximadamente 52 mil bichos vulneráveis acolhidos por 120 ONGs - é o estado brasileiro com o maior registro de instituições do tipo. "Esses números classificam São Paulo como o estado que mais possui animais em condição de vulnerabilidade no Brasil, concentrando 30% das organizações que acolhem pets. Em São Paulo existem mais ONGs do que as Regiões Norte e Nordeste somadas", disse Nelo Marraccini, presidente do IPB.
De acordo com números do IPB, o crescimento na adoção de bichos havia superado os 50% no primeiro trimestre, antes da pandemia. Segundo o IBGE, o Brasil tem 28,8 milhões de domicílios com algum cachorro, o que representa 44% do total de domicílios, e outros 11,5 milhões com algum gato. Os dados ainda apontam que o Brasil vacina 75% da população animal.