SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um novo estudo publicado nesta quinta (16) pela revista Cell Metabolism mostra, pela primeira vez, uma relação causal entre o consumo dos chamados ultraprocessados e os malefícios para a saúde humana, como maior ingestão calórica e ganho de peso.
Entre os exemplos de alimentos ultraprocessados estão salgadinhos de pacote, refrigerantes, biscoitos industrializados e alimentos prontos congelados, que passam por muitas transformações até assumirem a forma final -diferente do que acontece com alimentos processados (como queijos e pães artesanais), que se valem de poucos ingredientes e processos, e minimamente processados (como vegetais congelados), que praticamente não passam por transformações.
Cientistas dos NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA) selecionaram 20 pacientes, dez homens e dez mulheres, com idade média de 31,2 anos, peso estável e sem doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, para participarem do estudo.
Os voluntários ficaram internados por quatro semanas e receberam, na primeira quinzena, uma dos tipos de dieta do estudo -ultraprocessada ou não processada. Na quinzena seguinte, era a vez de consumir a outra dieta. Os participantes podiam sempre comer o quanto quisessem.
As duas dietas tinham quantidades iguais de nutrientes como proteína, gordura, carboidrato, fibra e açúcar, e o menu de cada uma delas variava diariamente ao longo da semana. Nos quesitos saciedade, prazer de comer e familiaridade com as apresentações, os participantes consideraram ambas equivalentes. Ou seja, não daria para explicar o aumento no consumo de comida ultraprocessada simplesmente pelo sabor.
Segundo o principal investigador do estudo, Kevin Hall, do setor de fisiologia integrativa do NIDKK (instituto que estuda diabetes, doenças digestivas e renais), não haveria por que, a princípio, esperar que houvesse diferença significante no efeito das dietas no organismo.
"Eu era cético quanto ao fato de uma dieta composta por alimentos ultraprocessados ter efeito na ingestão calórica ou no ganho de peso, já que os nutrientes como açúcar, sal, gordura e fibra eram pareados entre elas. Para minha surpresa, houve uma grande diferença", disse à reportagem.
Uma das principais características de alimentos ultraprocessados é a falta de fibra -daí a necessidade de complementar a dieta com um suplemento alimentar rico em fibras solúveis, algo que não atrapalhou o sabor, segundo os participantes. Alimentos in natura, como folhas e frutas, suprem com facilidade essa demanda na dieta não processada.
A diferença entre os tipos de fibra pode ser uma das explicações para o desempenho das dietas (uma das hipóteses dos cientistas é que a fibra solúvel não seja tão boa em atrasar a metabolização do alimento pelo organismo). Consequentemente, houve o acúmulo em forma de gordura.
Outra explicação para o ganho de peso é a quantidade de comida ingerida, especialmente no café da manhã e no almoço, que chegou a ser 30% maior durante os dias de dieta ultraprocessada. Além disso, a velocidade de ingestão, calculada coma a razão entre quantidade de comida consumida e tempo que dura a refeição, foi 50% maior na dieta ultraprocessada, que é mais fácil de mastigar e engolir.
Devorar a comida nesse ritmo pode não dar tempo para os mecanismos que sinalizam saciedade funcionarem de maneira ideal.
O ganho de peso causado pela dieta ultraprocessada, segundo medições feitas pelos cientistas, também pode ser explicado, em parte, pelo consumo maior de sal. Em excesso o nutriente pode aumentar a retenção de água, aumentando o peso, portanto.
Durante o isolamento exigido pelo estudo as pessoas liam, trabalhavam em projetos, jogavam videogames e assistiam a filmes. Mas também se exercitavam durante uma hora por dia, para evitar o sedentarismo.
Apesar dos bons hábitos, só durante o período em que estavam na dieta não processada houve melhora de alguns parâmetros sanguíneos como a redução da produção de grelina, hormônio responsável pela fome, e aumento do hormônio PYY que dá sensação de saciedade. Também houve redução nos níveis de triglicérides e de colesterol LDL, ambos ligados a doenças cardiovasculares.
O médico e professor da USP Carlos Augusto Monteiro, que coordenou o "Guia Alimentar para a População Brasileira", relata que vários estudos já haviam demonstrado uma associação entre a alimentação baseada em ultraprocessados e o ganho de peso, mas que o novo estudo dos NIH é o primeiro a estabelecer a relação de causalidade.
"Diante deste achado, a necessidade de que existam políticas para restringir o consumo de alimentos ultraprocessados fica ainda mais evidente, como, por exemplo, a proibição da propaganda desses produtos, em particular aquela dirigida a crianças e adolescentes, o aumento de impostos, de modo a desestimular o seu consumo, e a rotulagem frontal com advertências que informem os consumidores sobre o perfil inadequado de nutrientes tão comum nesses produtos", diz Monteiro.
A presença de aditivos e seus supostos malefícios para a saúde, tema de interesse de muitos pesquisadores, como o próprio Monteiro, não foi investigada nesse estudo. Mesmo assim para o professor da USP não faltam evidências para mudar a políticas de redução de consumo de ultraprocessados. "Sem essas políticas, continuaremos a observar no Brasil o surgimento, a cada ano, de 1 milhão de novos casos de obesidade e de 300 mil novos casos de diabetes, números que vêm sendo mostrados pelo sistema Vigitel do Ministério da Saúde desde sua criação em 2006."
No estudo da Cell Metabolism, Hall e colegas escrevem: "Até que produtos reformulados se disseminem, limitar o consumo de alimentos ultraprocessados pode ser uma maneira efetiva para prevenir e tratar a obesidade." Os autores dizem que os caminhos podem abranger diferentes dietas, sejam elas low-carb (com baixo teor de carboidratos), low-fat (com pouca gordura), baseada no consumo de plantas ou em produtos de origem animal.
João Dornellas, presidente da Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), diz que a classificação de uma alimento como ultraprocessado "não encontra respaldo na ciência e na tecnologia de alimentos".
"O estudo compara duas dietas igualmente desbalanceadas, com tipos de alimentos e bebidas completamente diferentes. O estudo não compara produtos caseiros com alimentos industrializados correspondentes. Por exemplo, um hambúrguer feito em casa com um feito na indústria, o que poderia permitir a avaliação dos efeitos do processamento de alimentos na dieta", afirma o executivo.
Ele diz ainda que a indústria de alimentos estimula a importância do consumo equilibrado, da educação alimentar e da adoção de estilos de vida saudáveis. Segundo a Abia, apenas 10,5% do faturamento do setor vem de da venda de produtos como aperitivos, sobremesas, temperos e outros itens de consumo ocasional.
Nos EUA, mais da metade das calorias consumidas pela população vêm de alimentos processados. No Brasil, esse percentual, segundo Monteiro, é de cerca de 20%. Outro fator a que pesa para os americanos é que lá a comida não processada tende a ser mais cara. No estudo, o custo da dieta não processada foi 50% maior do que a baseada em ultraprocessados. No Brasil, a opção por alimentos não processados tendem a pesar bem menos no bolso -basta ir à feira.
A nutricionista Bianca Naves diz que, por causa dos riscos à saúde, como obesidade e doenças crônicas, como hipertensão arterial, diabetes e dislipidemia (desbalanço no metabolismo de gorduras), o apelo de limitação no consumo de ultraprocessados deve ser levado em conta, "já que essas são comorbidades custosas para o sistema público de saúde".
"Mas, além da qualidade nutricional, é necessário a avaliação do estilo de vida de cada indivíduo ou de determinada comunidade. A prática de atividade física, o manejo do estresse, a qualidade do sono, são fatores determinantes para a boa saúde. Não é apenas um único fator que determina riscos, e sim, o conjunto deles", diz a nutricionista.