Deitar numa cama limpa, comer, tomar banho, lavar roupa... Tudo o que é rotina virou luxo impensável para uma multidão de flagelados pelas enchentes em Alegrete, na Fronteira Oeste. A cheia histórica do Rio Ibirapuitã, que corta a cidade, é considerada a maior desde 1959 e forçou 4,7 mil pessoas a se retirar de casa. O número continua a subir desde o início da enchente na quarta-feira (10): só entre domingo (13) e esta segunda-feira (14), são 400 vítimas a mais.
Dos 4,7 mil flagelados de Alegrete, a cidade mais atingida pelas chuvas deste verão no Rio Grande do Sul, 1.174 estão desabrigados e 2.611, desalojados (foram para a residência de familiares).
O curioso é que o nível do rio tem baixado. Estava 12,8 metros acima do normal no domingo e nesta segunda passou para 11,6 metros. O número de atingidos, no entanto, continua em alta. Isso porque muitos moram no interior do município e só foram localizados pelas autoridades recentemente.
Apesar do nível do rio ter recuado, poucos moradores se arriscam a voltar para casa por dois motivos: há previsão de nova chuvarada entre esta segunda-feira e terça; e também porque tudo o que tinham está inutilizado, estragado ou no mínimo molhado, então é preferível ficar em um abrigo ou com familiares até ter a dimensão dos danos.
Precariedade
Vida de flagelado é conviver com a precariedade. Alegrete designou 10 locais como abrigo. O maior deles é o ginásio de esportes do Instituto Estadual de Educação Oswaldo Aranha, um dos maiores da Fronteira. Mais de 40 famílias estão amontoadas dentro do prédio. Para manter um mínimo de privacidade, as famílias colocam lençóis pendurados em varais, separando a cancha de futebol em cubículos demarcados por móveis.
Os moradores trouxeram junto a "criação": pintos, galinhas, cães, gatos e até papagaios.
— Tem de trazer os bichinhos, né...não vou deixar o rio levar — justifica a dona de casa Cibele Santos dos Santos, uma das abrigadas.
Moradora do bairro Macedo, ela convive com enchentes há 36 anos, já que mora ao lado do Rio Ibirapuitã, por falta de dinheiro para comprar um terreno melhor. A cada chuvarada, o medo. Concretizado semana passada, quando 325 mm de chuva desabaram sobre a Fronteira Oeste.
Cibele saiu às pressas e deixou em casa guarda-roupas, sofá e cama de casal. Os eletrodomésticos, roupas e bichos, conseguiu acomodar num caminhão. Teve de pagar pelo transporte até o ginásio. Dois cachorros ela deixou na sogra. Já a gata e um filhote, levou para o abrigo. O gatinho virou atração dos flagelados, pelas cambalhotas.
Já Tiago Camargo trouxe galinhas, pintos, gatos e cachorros. Uns, grandes, de guardar fazenda. Ele é trabalhador rural, vive de changa (biscate). Tem um pequeno lote de campo junto ao leito do rio.
— Tá tudo coberto de água agora. É a vida — diz, resignado.
Água que, aliás, falta no abrigo Oswaldo Aranha. Parece contraditório, mas a cheia acarreta desabastecimento da cidade. É que as bombas de recalque estão submersas, além disso a falta de energia elétrica impede o bombeamento da água para as torneiras. O resultado é que os flagelados têm de beber de galões fornecidos pelo Exército. Banho, nem pensar. Alguns, mais corajosos, usam o próprio rio Ibirapuitã para se lavar. As águas, traiçoeiras na semana passada, agora estão mansas. Pelo menos, até a próxima tempestade.