A família Guerra, de Passo Fundo, está dividida nesta passagem de ano. Parte segue na cidade gaúcha, mas Télio Carlos Guerra, 68 anos, e Fátima Ruthe Guerra, 65, estão no arquipélago de Cabo Verde, distante pouco mais de 400 km da costa africana, para cumprir uma das jornadas mais difíceis da vida: tentar livrar o filho Daniel Guerra da acusação de tráfico internacional de drogas.
Preso desde agosto junto de outros dois brasileiros, Rodrigo Dantas e Daniel Dantas, e de um capitão francês, Daniel foi contratado por uma empresa holandesa para levar um barco de 22 metros de comprimento de Salvador até Portugal. Depois de 18 dias cruzando o Oceano Atlântico, problemas mecânicos os forçaram a ancorar em Cabo Verde. No país, a polícia inspecionou o barco e descobriu mais de uma tonelada de cocaína no casco, sob um revestimento de ferro e concreto. Os marinheiros alegam terem sido enganados, usados como mulas sem ter conhecimento da carga de droga.
Daniel, 36 anos, é formado em Relações Exteriores, fez mestrado em Portugal, estudou inglês por um ano na Austrália, mas sua característica maior é de aventureiro. Já trilhou a América do Sul de bicicleta e, depois, definiu as jornadas marítimas como novo projeto. Estudou navegação em São Paulo, se destacou em uma regata até Fernando de Noronha e, mais recentemente, resolveu cruzar o Atlântico.
Em entrevista concedida por telefone neste sábado (30), Télio e Fátima dizem que o julgamento do filho por tráfico internacional de drogas está previsto para ocorrer em 45 dias, em meados de fevereiro. Eles relatam a rotina no Cabo Verde, as condições da prisão no país formado por um conjunto de dez ilhas e os contatos com o filho nos dias de visita _ para a sorte da família Guerra, Cabo Verde não oferece a realidade autoritária de outras nações do continente africano. O pai do suspeito diz que o país não tem pena de morte, e o Relatório de Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU registra que Cabo Verde está no "topo de países quanto aos direitos políticos e às liberdades civis".
A volta de Télio e Fátima ao Rio Grande do Sul estava prevista para meados de janeiro, quando completariam um mês no Cabo Verde, mas com a indicação de uma data para o julgamento, eles pretendem estender a permanência e regressar somente quando tiverem o filho ao lado, livre. Confira os principais trechos da entrevista:
Como surgiu o convite para o Daniel embarcar?
Quando ele voltou do Ushuaia, disse que o sonho dele era fazer aulas de navegação para conseguir cruzar o Oceano Atlântico. Para tirar a carteira (de navegador), ele estava fazendo aulas em São Paulo. E fez uma viagem para Fernando de Noronha. Ele tirou uma carteira para navegar em mares brasileiros. Para conseguir a última carteira, ele saiu nessa empresa da Holanda que queria contratar pessoas para fazer a viagem e levar esse barco aqui do Brasil para a Ilha dos Açores. Ele assinou, e temos o contrato, no modo delivery (sem pagamento em dinheiro, apenas com as custas garantidas e a experiência em milhagens náuticas para o currículo).Eles foram vítimas de uma grande enrascada do dono do barco, o tal de George Saul, que chamam de Fox. Ele se fez muito de amigo dos guris, disse que iria viajar junto no barco. Quando chegou no último momento, o Fox disse que não ia poder ir, que tinha um casamento e que iria encontrar eles na Ilha dos Açores. De última hora, contrataram um capitão francês. E se foram os quatro naquele barco de 72 pés e 22 metros de comprimento. Enfrentaram dois furacões no mar. Quando chegou em Mindelo (cidade do Cabo Verde), o barco empacou. As velas não funcionaram, o motor parou.
Foram eles que pediram resgate para as autoridades do Cabo Verde?
Eles estavam em alto- mar, à deriva. O Daniel e o capitão foram de bote até a marina, uma distância que eles percorreram em uns 20 minutos. Avisaram as autoridades e voltaram ao barco. Ficaram mais dois dias parados esperando em alto-mar. Imagina se soubessem da existência da droga ali. Iriam deixar tudo parado, esperando às autoridades chegarem para rebocar eles até a costa? Quando finalmente chegaram, o Daniel nos ligou, disse que estavam muito cansados, que a viagem tinha sido muito desgastante, mas que estavam bem. Ele disse que sairia para comprar uma lembrança. Ele voltou ao barco e os outros dois (marinheiros Rodrigo Dantas e Daniel Dantas) saíram. Neste momento, a polícia chegou no barco. Estavam só o Daniel e o capitão.
Quando e como vocês ficaram sabendo da prisão?
Logo que aconteceu, o Daniel teve uns minutos para nos ligar. Eu estava em casa. Ele disse: 'pai, fomos traídos pelo Fox, que é o dono do barco. Ele pôs cocaína dentro do barco enrustida no casco e nós não sabíamos'.
Quando vocês chegaram em Cabo Verde, em meados de dezembro, encontraram o Rodrigo Dantas e o Daniel Dantas em liberdade condicional (como não estavam no barco no momento do flagrante, permaneceram algumas semanas em condicional)?
Eles estavam em liberdade. Chegamos em 14 de dezembro. Nesse dia, tivemos um momento com o nosso filho Daniel. O Rodrigo estava trabalhando em uma marina. Conseguimos falar com ele dias depois. E o Daniel Dantas fomos conhecer poucos dias atrás, mas já na prisão, quando eles foram também detidos.
Como são as visitas ao Daniel na prisão?
No início, tínhamos cinco minutos por semana, ele nos ligava. Agora, nós temos de 8h45min às 11h, nas quintas, e de 8h45min às 11h, nos domingos (neste domingo, 31 de dezembro, os pais visitaram Daniel na prisão. A mãe, Fátima, está de aniversário).
É um lugar em que podem conversar reservadamente?
É tudo numa sala comum, tem outras pessoas que já estão detidas e que ficam ali com os seus familiares. E cada um se reúne num cantinho. Ficam entre 20 e 30 pessoas numa sala.
Como está a cabeça do Daniel?
Ele chegou a emagrecer 18 kg. Isso nos preocupa muito, ele fez quimioterapia com 18 anos. Foi muito sério o câncer que ele teve. O Daniel sempre me disse que não queria trabalhar em escritório, ele se sentia mal, não gostava de ficar fechado. E agora ele me disse: 'Barbaridade o que aconteceu comigo, ficar aqui preso, sem espaço nem para fazer um exercício adequado'. É muito difícil para nós.
Quais são as condições da penitenciária?
Dentro dos padrões daqui, dizem que é das melhores cadeias que têm em todo o Cabo Verde. Não tem judiaria, as pessoas se tratam bem. Dentro das limitações, não são ásperos. São pessoas educadas no trato. Não existe aquela coisa de 20 ou 30 pessoas na cela. Ele está com um ou dois na cela. Os outros meninos também.
Qual a situação jurídica? Há perspectiva de julgamento?
Foi dado um prazo de 45 dias para o julgamento. Todos os recursos que tinham de ser feitos, o advogado foi fazendo. A Justiça vai ter que aprovar a saída deles, eles sabem que são meninos inocentes, mas tem todos esses trâmites. O Judiciário teve aqui 30 dias de férias, tem os protocolos do país. Para quem está aguardando, não é fácil.
No cenário otimista, ele pode ser libertado ou deportado?
Eu não acredito em deportação. Ele vai ter que sair daqui limpo. O dono do barco não apareceu até agora. Ele está sendo procurado pela Interpol. Isso tudo vai pesar muito.
Pelas leis do Cabo Verde, na pior das hipóteses, o que pode acontecer no julgamento (o abaixo-assinado na internet pela liberdade dos marinheiros cita a possibilidade de pena de 15 anos de prisão)?
O advogado jamais nos deu esse tipo de previsão. Eles são inocentes. Pelo menos para nós, até agora, não foi colocado nada disso.
Quais serão os argumentos do advogado para alegar a inocência?
Eles não tem prova de que os meninos colocaram a droga ali. Cadê a prova? Eles (marinheiros) não tem que provar que são inocentes. Outra coisa: eles chegaram aqui, com mais de uma tonelada dessa porcaria (cocaína). Eu não entendo disso, mas eles não tinham uma arma, não tinham nem dinheiro. Eu criei um homem de caráter. Tenho certeza absoluta da inocência dele. Tenho orgulho da nossa cidade. Passo Fundo nos conhece. Temos uma vida inteira de trabalho, e continuamos trabalhando, eu no caminhão e minha esposa lecionando.
Vocês vão passar a virada do ano sozinhos no Cabo Verde?
Conhecemos algumas pessoas por aqui, fizemos certa amizade, nos convidaram para passar com eles, no Natal também foi assim. Mas é muito difícil. Como costumamos dizer, o gaúcho fora do ninho, não é fácil. Tem alguns brasileiros trabalhando por aqui, a gente tem procurado se amparar, conversar com as pessoas.