Um grupo autointitulado como anarquista é suspeito de ser responsável por 11 ataques a viaturas, sedes de partidos, concessionária de veículo, banco, igreja, consulado e monumento militar em Porto Alegre entre 2013 e 2017. Na última quarta-feira (25), a Polícia Civil realizou a operação batizada de Érebo (na mitologia grega, região abaixo da Terra e acima do inferno), cumprindo 10 mandados de busca e apreensão na Capital, em Viamão e em Novo Hamburgo, com intuito de desarticular o grupo, que incluiria universitários, alguns deles estrangeiros.
No dia 24 de setembro de 2016, integrantes da 1ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, no Centro, se surpreenderam com a explosão de uma viatura em frente ao local. O artefato foi detonado após um agente ligar a ignição do carro – por sorte, as chamas não atingiram o tanque de combustível. O fato não foi noticiado na imprensa. Na investigação, descobriu-se que o material era de fabricação caseira com etanol e gasolina dentro de uma garrafa PET – o típico coquetel molotov. Mas com timer e bateria anexados.
A polícia, que desconfiou da ação de black blocs, não imaginava que outras ocorrências semelhantes iriam surgir – e antigas também estariam vinculadas – e que os responsáveis seriam integrantes de um grupo que diz ser anarquista. A investigação identificou 32 pessoas envolvidas nas ações, após ouvir testemunhas, analisar imagens de câmeras de segurança e coletar provas periciais. Mas a descoberta de sites e livros publicados pelos suspeitos seria a prova principal para ligar os casos examinados.
– Para nossa surpresa, em um dos livros foi publicada a explosão da nossa viatura. Como eles poderiam saber? Não saiu na imprensa. Como descobrimos e comprovamos posteriormente, só se eles mesmos fossem os autores – afirma o delegado Paulo César Jardim, titular da 1ª DP e responsável pela apuração.
De acordo com a polícia, um dos locais de encontro do grupo seria um espaço denominado de Biblioteca Kaos, onde haveria produção de textos para publicação na internet e de livros. Também, segundo a polícia, serviria para debates e confecção de coquetel molotov. Uma das reuniões foi marcada via e-mail, mas os organizadores teriam esquecido de ocultar os nomes dos destinatários. Assim, a polícia identificou os integrantes.
– Era nesse espaço que debatiam sobre acontecimento contrário à ideologia deles e, depois, planejavam e preparavam ações de represália – afirma Jardim.
Um ano e mês depois do ataque à viatura, a equipe de investigação aponta que 11 ataques teriam partido do grupo. No livro, os integrantes atribuem a si pelo menos mais 20 casos. O material foi catalogado e publicado como forma de protesto ao sistema político e econômico vigente. O alvo seria o capitalismo de uma forma geral, com uma sociedade estruturada de maneira injusta e desigual.
– (É) uma forma de ataque paralelo a toda e qualquer forma de poder e controle, seja ele político, religioso e moral que existe hoje na sociedade – afirma o chefe de Polícia Civil, Emerson Wendt.
Especialista em anarquismo, o cientista político Bruno Lima Rocha avalia que a ideologia não tem ligação com os ataques cometidos. Segundo ele, qualquer tipo de comparação seria criminalizar a proposta anárquica, que é de cunho político pertencente ao campo do socialismo.
– Muitas vezes existe uma disseminação da ideologia que ultrapassa o controle político das organizações políticas anarquistas – afirma.
Inicialmente, Jardim pediu à Justiça a prisão temporária de 12 envolvidos com o grupo e a condução coercitiva de outros 23. A 9ª Vara Criminal do Foro Central da Capital só concedeu 10 mandados de busca. O juiz Fábio Heerdt disse que não encontrou elementos suficientes para as prisões e conduções. Segundo ele, não havia indícios que permitissem a individualização, entre os integrantes do grupo, da participação de cada suspeito nos ataques investigados.
Jardim informou que tem prazo para concluir o inquérito e não descarta, com o indiciamento, solicitar novamente a prisão de pelo menos 12 suspeitos. Ele diz não ter dúvidas de que todos serão indiciados pelos crimes de formação de quadrilha, tentativa de homicídio (em dois casos apurados) qualificado pelo uso de explosivos, dano ao patrimônio público e associação ao crime.
A polícia pretende ainda apurar, em um segundo momento, quem são os patrocinadores das ações. Atentados mais antigos em Porto Alegre, que constam nos livros encontrados e foram reivindicados pelo grupo, também devem ser alvo de investigação.
Campanha para criminalizar ideologia, diz FAG
Por meio de vídeo publicado no YouTube na última quinta-feira, a Federação Anárquica Gaúcha (FAG) se manifestou a respeito da investigação da 1ª DP de Porto Alegre que culminou com a operação deflagrada na semana passada.
Segundo a entidade, foi criado um fato para dizer que o grupo estaria ajudando a desenvolver atos criminosos. Também informou que notas solidárias ao Espaço Pandorga, no bairro Azenha, e que foi um dos alvos de mandado judicial de busca, já foram divulgadas para denunciar a "invasão" policial do local. A federação afirma que materiais apreendidos como se fossem produtos para fabricar coquetel molotov não passam de garrafas PET com material reciclável.
A FAG também lamenta a "invasão" de antiga sede no bairro Cidade Baixa e que as ações seriam mais um capítulo da perseguição sofrida nos últimos 10 anos. A entidade considera grave que, no mandado de busca, consta a apreensão de material literário, entre outros. Para ela, isso é impedir a livre expressão. A organização diz haver uma campanha para criminalizar a ideologia anarquista.
Sobre os ataques investigados, a FAG não deixa claro que teria participado e trata o assunto como a polícia tentando ligar a organização e os espaços usados por militantes a "supostos" atos criminosos ocorridos na Capital. Enfatiza que o trabalho realizado é junto às comunidades, sendo um anarquismo inserido em ações sociais e buscando ser solidário a casos repressivos. A federação também critica a imprensa, destacando que está sendo criado um ambiente de criminalização dos movimentos sociais.
Sob apuração
Os 11 casos investigados que os suspeitos destacam em livro
1º de julho de 2013
Foram realizados ataques com uso de coquetéis molotov contra três viaturas da Brigada Militar estacionadas no pátio da Secretaria de Segurança, em Porto Alegre.
24 de fevereiro de 2014
Dez viaturas são incendiadas no pátio da Academia da Brigada Militar, na zona leste da Capital.
18 de janeiro de 2016
Dispositivo incendiário colocado em um carro de combate militar, exposto em frente ao Regimento Osório de Cavalaria do Exército, entre as avenidas Ipiranga e Aparício Borges. O caso foi abafado, mas consta no livro do grupo.
9 de março de 2016
Registro de ataque incendiário à agência do banco Santander, na Rua Ramiro Barcelos, no bairro Independência, em Porto Alegre, consta em um dos livros (abaixo).
1º de maio de 2016
Ataque incendiário à sede do partido Democratas, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre.
23 de junho de 2016
Registro de ataque, com uso de explosivo, à concessionária Iesa, da Renault, situado na Rótula do Papa, na Capital. Uma funcionária limpava a calçada quando tocou com a vassoura em um saco preto, que explodiu. Dentro, havia uma garrafa PET com líquido amarelado, possivelmente gasolina, conectado a um detonador, espécie de bateria elétrica. A mulher sofreu ferimentos leves.
24 de setembro de 2016
O ataque com bomba incendiária em uma viatura da 1ª DP, no Centro, deu início à investigação sobre uma série de atentados vinculados ao mesmo grupo extremista com ideais anarquistas. O caso não foi divulgado ao público, mas estava registrado em um dos livros dos integrantes.
27 de setembro de 2016
Funcionários do PSD encontraram uma bomba na sede do partido, no bairro Cidade Baixa. O material estava na sacada do prédio, dentro de uma mochila, onde havia um artefato explosivo contendo cinco litros de gasolina com forte potencial incendiário.
13 de outubro de 2016
Vandalismo contra o Monumento ao Batalhão Suez, na Praça dos Açorianos. A obra – que homenageia ex-integrantes do Exército que fizeram parte das forças de paz da ONU no conflito entre Israel e países árabes (de 1957 a 1967) – teve peças arrancadas e foi pichado durante a madrugada.
1º de novembro de 2016
Foi registrado o ataque com uso de coquetel molotov na paróquia São Pedro, no bairro Floresta, em Porto Alegre.
10 de julho de 2017
Brigada Militar e Polícia Civil foram acionadas após princípio de incêndio ao lado de um BMW que pertence ao consulado da Alemanha. O caso aconteceu na Rua General Vitorino, nas imediações da Annes Dias, no Centro. O fogo começou em uma garrafa plástica que continha combustível. Ao lado, havia material para que as chamas iniciassem aos poucos. O objeto estava junto ao meio fio, entre um contêiner e o veículo. O ataque seria em protesto à reunião do G20 em Hamburgo, na Alemanha (na mesma época do ataque na Capital) e foi publicado em livro do grupo extremista divulgado na última semana.
Local de encontro
Ações foram catalogadas em livros
Os atos que o grupo teria cometido em Porto Alegre foram documentados e publicados em sites e blogs, mas principalmente em três livros (confira abaixo), de acordo com a investigação. A produção teria sido feita na própria cidade, em local onde os suspeitos teriam se reunido para planejar crimes e ensinar técnicas de fabricação de artefatos incendiários caseiros. Além disso, a chamada Biblioteca Kaos seria o núcleo central dos principais líderes e responsáveis pela série de delitos catalogados nos livros.
O objetivo, segundo a polícia, seria reunir todos os ataques ocorridos na Capital, além dos principais fatos em outras localidades, e difundi-los para o Brasil e o resto do mundo. Inicialmente, o local escolhido teria sido um imóvel ocupado de forma clandestina na Rua João Manoel, no Centro. O espaço foi desativado porque o dono obteve na Justiça a reintegração de posse. No ano passado, a biblioteca funcionou na Rua Alberto Torres, na Cidade Baixa. Atualmente, está em local desconhecido.
É possível encontrar diversas publicações em uma página na internet. Para monitorar o acesso, o grupo mantém um controle que permite identificar o local de onde o site foi acessado.
Na última semana, durante a investida policial, foi divulgado que parte do grupo se reunia em um galpão no bairro Azenha. No local, oito pessoas de várias nacionalidades tinham faixas, tintas e 10 materiais usados para a fabricação de coquetel molotov. O prédio tem diversas pichações com o símbolo do anarquismo.
Registro e propaganda
Publicações serviam de incentivo para novas ações
O livro Cronologia Maldita, Golpeando o Inimigo serviu de base para a investigação. Inclui os 11 ataques divulgados pela polícia. A publicação contém fotos, datas, informações detalhadas, motivações e justificativas. Em alguns casos, são registradas notas que saíram em jornais da cidade. Constam outros ataques reivindicados pelo grupo extremista, mas que não foram alvo de investigação policial. Ao todo, são ações entre os anos 2000 e 2015.
Na publicação Cronologia da Confrontação Anárquica, há ações, com as respectivas datas, em todo o país durante o ano passado. Essa é a principal diferença do primeiro livro, que é voltado para atos em Porto Alegre.
Livro mais recente do grupo, Bem-Vindo ao Inferno foi lançado na semana passada. Segundo os suspeitos, a publicação trata da insurreição contra a cúpula do G20, que se reuniu em julho deste ano em Hamburgo, na Alemanha. A edição contém uma série de ações realizadas contra o encontro, inclusive o incêndio ao lado de um carro do consulado alemão em Porto Alegre.