A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, o Brexit, dispararam o alarme para um mundo economica e politicamente diferente. Com discurso protecionista, voltado a dar garantias aos nativos em detrimento de outros povos, o presidente americano – e seus eleitores – e a maioria dos britânicos chamaram atenção para um aspecto: a globalização beneficiou a maioria das pessoas, mas não a todos.
Agora, o desafio de governos e instituições tem sido barrar ações que levem ao isolamento e retomar a promoção da integração. O tema foi destaque na agenda do G20, na Alemanha, inclusive com críticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) à política de comércio exterior da Casa Branca. No mundo todo, desde 2012, foram estabelecidas 1,7 mil medidas comerciais protecionistas. Nem a América Latina, uma das prejudicadas com o fechamento das transações entre os países, deixou de adotar medidas para “preservar” seus mercados.
Ángel Melguizo, diretor da Unidade América Latina e Caribe da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), descreve clima de descontentamento de parcelas significativas das populações de muitos países com os resultados da globalização. Avanços importantes na redução da pobreza – a taxa caiu de 43% para 23% entre 2000 e 2014, especialmente por conta do Brasil –, não foram observados na classe média. Esse segmento viu postos de trabalho desaparecerem nas últimas décadas, atividades foram digitalizadas ou automatizadas e vive o risco de voltar à pobreza.
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– Trabalhadores com qualificações mais baixa e mais alta conseguiram avançar, mas quem está no nível intermediário, não – diz o diretor, que participou na semana passada de encontro promovido pelo banco Santander em Madri para discutir o protecionismo.
A percepção pode ser de que essas vagas migraram para outros países, com mão de obra mais barata, mas Ángel avalia que essa perda de empregos de qualificação média não se deve à abertura comercial, mas às transformações tecnológicas e à perda da importância da indústria em países mais desenvolvidos. Para o diretor da OCDE, os governos que priorizam o crescimento inclusivo conseguem demonstrar à população os benefícios da globalização. Seria preciso elevar a produtividade média dos trabalhadores, assim como garantir possibilidades de inclusão.
– Abertura tem de vir integrada com projetos de educação – cita.
Há espaço entre os países da América Latina para vencer barreiras impostas por nações de outros continentes. O comércio entre os membros é reduzido e há baixa integração. Mas, nos últimos anos, a abertura comercial intrarregional ganhou impulso. Alianças comerciais se formaram e acordos foram celebrados. A Argentina, por exemplo, tem nos vizinhos o principal mercado para seus produtos industrializados. A estratégia do governo de Mauricio Macri, que substituiu os 12 anos da gestão protecionista dos Kirchner, é aumentar a competitividade como forma de fomentar o emprego.
– Hoje, temos acordos com 10% do PIB mundial, mas queremos chegar a 50% em quatro anos – avisa o subsecretário de Comércio Exterior argentino, Shunko Rojas.
O cenário não é diferente no Brasil – eleito pelos argentinos como parceiro prioritário. Os 70 acordos comerciais que o país mantinha em 1990 e que cobriam menos de um terço das trocas externas hoje subiram para 400, e chegam a dois terços. Além disso, há os movimentos via Mercosul, como o acordo que deverá ser, finalmente, assinado com a União Europeia no final do ano.
Brasil aposta na simplificação de processos
Nona maior economia do mundo, o Brasil ocupa uma distante 25ª posição entre os principais países exportadores. Para reduzir essa distância, e impulsionar a atividade econômica, o Ministério da Indústria e Comércio Exterior (MDIC) está implementando um sistema que simplifica os processos de transações comerciais com outras nações. O Portal Único do Comércio Exterior, que hoje já cobre um terço das exportações brasileiras, deverá abranger todos os embarques e desembarques em 2018 – até o final do ano, passará a incluir as importações.
A estratégia é facilitar a vida de vendedores e compradores e, assim, atrair mais negócios. Hoje, é preciso interagir com mais de 20 órgãos de governo, e fazer isso por meio de sistemas diferentes, muitas vezes com documentação em papel e informações repetidas.
– Tenho dificuldade grande em explicar o que se passa nesse complexo cenário burocrático. O CNPJ é solicitado 18 vezes em um processo de importação ou exportação – reconhece Abrão Miguel Árabe Neto, secretário de Comércio Exterior do MDIC.
Esse aumento de prazo eleva custos e gera perda de competitividade. Com o portal, a apresentação de informações se reduz em 60% e os mesmos dados são compartilhados com as diferentes estruturas, de agências reguladoras à fiscalização. Com isso, o tempo médio para liberar uma operação cai em 40% – uma exportação passa de 13 para oito dias e a importação de 17 para 10. Um estudo da Fundação Getulio Vargas mostra que o crescimento médio de 6% a 7% na corrente de comércio (a soma das importações e exportações) gera incremento de 1,52% (US$ 23,8 bilhões) no Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro ano, chegando a 2,52% em 14 anos.
– Precisamos construir pontes, não muros. Brasil está convencido que é preciso abrir-se mais, integrar-se ao mundo, sobretudo de maneira gradual, inteligente, responsável, usar o livre comércio para o crescimento social e da economia. Há mais oportunidades do que ameaças – afirma Árabe Neto.
*O jornalista viajou a Madri a convite do banco Santander.
O Brexit em duas visões
Durante evento do Santander, em Madri, um diplomata britânico, Ivan Rogers, representante do Reino Unido na UE até janeiro, e outro, do lado do bloco europeu, Stefano Sannino, embaixador da Itália na Espanha, falaram sobre o Brexit. Veja um resumo das palestras:
Opinião: É um momento revolucionário
Ivan Rogers, ex-representante do Reino Unido na UE
O Brexit, para o Reino Unido, é um momento político revolucionário, que modificará o regime econômico, político e social de uma forma que não tivemos nos últimos 50 anos. Não devemos estar surpresos por essa decisão do plebiscito. Estamos falando de um processo de muitos anos. A opinião britânica sobre estar ou não na União Europeia (UE) não era parecida com a dos demais membros do bloco.
Ao Reino Unido, o que mais interessa é o mercado comum, e surpreende que um país assim deixe o mercado único.
Não creio que nenhum dos outros 27 países da UE siga o Reino Unido. Tem havido movimentos populistas parecidos, especialmente sobre migração, futuro da eurozona, mas é difícil que sigam o caminho de Brexit. Há melhora de situação econômica, o que se traduz em maior solidariedade entre as nações.
Quem batalhou pelo Brexit não detalhou muito como seria o futuro pós-Brexit, quais as implicações para a sociedade e a economia Sabemos que fazer parte da UE é uma estrutura política complexa. Sair não é algo que possa se produzir em um prazo de 18 meses. Há de se estabelecer uma relação totalmente nova com a UE.
Em poucos anos, teremos um acordo de âmbito muito amplo, mas seguimos dizendo em ambos os lados do canal (da Mancha) que queremos seguir colaborando, mas é preciso saber como. É possível conseguir esse acordo? Os especialistas no Reino Unido dizem não. Na minha opinião, serão muito parecidos com os que há hoje, uma vez que não há tempo.
O mais importante é o direito dos cidadãos da UE no Reino Unido e dos britânicos que vivem na Europa. Estamos falando de situações complexas, tortuosas e emocionais. Não creio que o Reino Unido está a ponto de se converter em um país protecionista. Seguiremos a favor de comércio livre, isso não vai mudar. Deixar a UE e a união aduaneira mostra um país que quer entrar no comércio mundial, está a favor do livre-comércio. A médio e curto prazos, porém, haverá retrocesso nos fluxos comerciais.
Opinião: É ruim para todos, uma involução
Stefano Sannino, embaixador italiano na Espanha
O Brexit é ruim para todos, uma involução. É evolução negativa para o Reino Unido, que terá problemas no futuro para se posicionar. Para a União Europeia (UE), é a perda de um parceiro importante, de capacidade de competir com mercados internacionais. Todos estaremos pior politicamente e economicamente ao final.
O Reino Unido vinha de uma tradição de mal-estar. Os problemas começaram com o Tratado de Maastricht. Agora, a UE resolveu ir além, até com política exterior e defesa. Não há um estupor completo, mas foi como se chocar contra um muro. É uma lástima que, ao final, não tenhamos conseguido. É negativo para ambos porque significa um fracasso para a UE.
O choque do Brexit e Donald Trump mostraram aos líderes que a construção da UE enfrenta um momento difícil. Um país importante decide ir embora, estamos com novo lateralismo por parte dos EUA, o que exige a resposta da UE de que os países sozinhos não têm como enfrentar os desafios do mundo globalizado.
Eleições recentes na UE mostraram que os sentimentos nacionalistas eram ilusão. Não há solução nacional possível aos desafios que nos impõe a atualidade, a crise financeira, de segurança, o terrorismo, migrações. Isso obriga nossos governos a ter uma atitude mais construtiva para evitar que golpes abalem a estrutura da UE. Espero que os 27 governos possam dedicar-se mais para dar uma solução política às crises. A crise econômica não ficou completamente para trás. Globalmente, foi retomado o ritmo de crescimento econômico, mas de forma desigual.
O que vai ocorrer com a UE no futuro? Creio em uma distinção entre países que não querem ir além e tentam parar a UE. Temos de nos esforçar para que não pare. Mas é preciso cuidado, porque o nível de desenvolvimento do bloco não é igual, há países com mais dificuldades, temos de ter solidariedade. Solidariedade, uma palavra difícil neste momento, é um dos temas básicos e temos de seguir lutando para isso.