A dramática trajetória de um menino que inicia sua experiência com entorpecentes aos oito anos evidencia o despreparo da sociedade para lidar com a drogadição na infância. E se engana quem pensa que este começo tão precoce só tem como pano de fundo metrópoles ou regiões conflagradas pela violência. O cenário da história desta criança é a turística Bento Gonçalves, cidade com pouco mais de 100 mil habitantes e visitada anualmente por quase 2 milhões de turistas. Mas poderia ser qualquer outro pacato município da Serra, já que o crack – droga causa efeitos no cérebro entre 5 a 10 segundos e cujo "barato" instantâneo é capaz de viciar desde os primeiros usos – se espalhou rapidamente em todo o território gaúcho.
O problema cresce, principalmente, porque muitas famílias ainda acreditam que as crianças passam imunes ao tráfico. Além disso, a própria rede de assistência tem dificuldade em saber como lidar com os pequenos viciados na pedra, já que, até então, a maior parte dos atendimentos envolve jovens com mais de 15 anos.
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Em Bento Gonçalves, a droga já mostra seus efeitos devastadores no cotidiano da população. Em um dia, a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) chega a receber mais de 10 pessoas para desintoxicação. Elas chegam, segundo a Secretaria de Saúde, em estado de surto – em quase todas as vezes, causado pelo crack.
– A situação é lamentável e, muitas vezes, nos deixa impotentes. A realidade exige que passamos a investir em prevenção – diz o secretário de Saúde de Bento Gonçalves, Diogo Siqueira.
De acordo com dados do Conselho Tutelar, o índice de crianças evadidas da escola em decorrência do uso de drogas quase dobrou em relação ao ano passado. Se no mesmo período de 2016 foram informadas 10 crianças, agora o número subiu para 18. Ainda que Bento Gonçalves seja uma das poucas cidades do Estado a manter serviço de reabilitação próprio, a Comunidade Terapêutica só recebe adultos.
– Quando se trata de menores de idade, o município compra vagas no Estado. A referência é Porto Alegre. Mas a maior dificuldade é que adolescentes não aceitam tratamento, e o índice de reabilitação é pequeno – lamenta Siqueira.
Internação e reabilitação
A psicóloga Neura Maria de Boni Santos, presidente da Pastoral de Apoio ao Toxicômano Nova Aurora (Patna), entidade que atua no tratamento de dependentes químicos em Caxias do Sul, lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não indica a internação de menores de 12 anos em clínicas de reabilitação e proíbe que sejam feitas no mesmo ambiente dos adultos. Elas devem ser tratadas com medicação e acompanhadas em centros de atendimento psicossocial, os Caps. A Patna teve, por alguns anos, o único serviço de internação de adolescentes da Serra, mas as 12 vagas foram fechadas no ano passado.
– Às vezes tem muitos adolescentes, às vezes nenhum. O problema é a resistência e, depois, a desistência. O ideal seria um tratamento para crianças e jovens em que eles retornassem para casa à noite, mas isso seria muito caro – afirma Neura, que atua na pastoral há 20 anos.
"Seu filho está no crack, mãe"
Quem enxerga o agitado e sorridente guri de uma viela erguida em área invadida de Bento Gonçalves não acreditaria no tanto de história que ele já protagonizou em 11 anos de vida. Natural de Arvorezinha, é filho de uma dona de casa e tem quatro irmãos. O pai perambula pelas ruas e nem lembra que um dia teve família.
– Foi vencido pela droga – resume a ex-companheira.
Por isso, o menino é criado pelo padastro desde os três meses de idade, e se refere a ele como pai com naturalidade. Foi o padastro quem alertou a mãe do menino sobre a mudança de comportamento. Olhos vermelhos, fala enrolada, jeito novo e muito agressivo com os pais indicavam que o drama da família começava.
– Eu pensei: ninguém daria drogas para uma criança de oito anos. Jurei que isso era mentira. Meu marido me alertou, mas eu só pensava: ele é uma criança, isso é impossível – desabafa a mãe.
Ao sair para brincar com os vizinhos mais velhos, voltava só à noite e de uma maneira diferente: sujo, cansado e brabo. O cigarro e o álcool deram o empurrão para drogas mais pesadas. Passou a sumir durante o dia. Depois, já não dormia mais em casa. A mãe peregrinava entre os vizinhos, que diziam não saber do paradeiro do menino. Ninguém queria se comprometer ao dar informações. A mãe, então, tomou coragem e foi até a casa de um traficante na mesma viela em que mora. Encontrou o guri dormindo, e o levou pra casa sujo e enrolado em um cobertor. Era hora de pedir ajuda.
– Bati na porta do Conselho Tutelar porque eu não sabia mais o que fazer. Eles levaram ele para o hospital e foi feito o primeiro exame para saber se ele usava drogas. Quando deu positivo, eu chorei. Dei muita liberdade pra ele – culpa-se.
A primeira internação para desintoxicação ocorreu em 12 de fevereiro de 2015, e a criança não havia completado nove anos. Depois da volta para casa, mês a mês a história se repetia: o menino sumia por um ou dois dias e retornava disposto a dormir e comer. A mãe acreditava que poderia ser diferente, e concordava que ele merecia brincar na rua com os amigos. A cada sumiço, o coração ficava mais apertado.
– Eu cheguei a prender ele em casa com corrente. Ficou uns dois dias, mas não adiantou. Ele começou a roubar coisa de dentro de casa logo em seguida. Até o celular da avó ele levou para vender e ganhar dinheiro – detalha a mãe.
Os pequenos delitos deixavam claro que a droga ainda comandava a mente dele. Nascia um pequeno infrator e filho da rua, já que dormia ao relento sob efeito de droga. A mãe logo confirmou que seu menino de oito anos era usado como ajudante para venda de drogas no bairro. Descobriu que ele frequentava pracinhas para vender maconha e crack e, em troca, recebia drogas para consumo.
– Um dia sai à noite, debaixo de chuva, e fui nas pracinhas. Era desesperador – lembra a mãe.
Foram pelo menos duas internações em Porto Alegre e duas passagens em um hospital de Bento Gonçalves. Em uma delas, o menino quebrou a janela e fugiu antes mesmo de concluir o processo de desintoxicação. A mãe o seguiu, resgatou e ouviu a sentença do médico:
– Seu filho está no crack, mãe.
"Quero ser um lutador famoso"
Enquanto engole os remédios segurando com força um copo com água, o menino que tenta se livrar do crack não se mostra preocupado ao exibir as unhas sujas. Aproveitava as férias escolares brincando com os irmãos no beco em uma ruela envolta por sujeira, sem saneamento, onde trabalhadores uniformizados dividem espaço com traficantes.
Ao ver a reportagem do Pioneiro se aproximar, o menino perguntou se não lhe haviam trazido algum brinquedo, mostrando que sua infância não fora roubada por completo pelo crack. Por meio de um projeto social, ele agora frequenta aulas de luta na região central de Bento Gonçalves. Vai e volta sozinho todos os dias, e tem se mostrado comprometido, garante a mãe. Por conviver com gente mais velha e responsável, ele sonha alto:
– Quero ser um lutador famoso.
Sempre que consegue prender a atenção de alguém, ensaia golpes de muay thai no ar. Ainda está matriculado na escola, mas não costuma prestar muita atenção e nem copiar a matéria. As folhas pautadas do caderno que estampa um carro estão praticamente em branco. As notas não estão boas, lamenta a mãe, que dá um respiro profundo ao ser questionada se o guri passa para a 5ª série. Para ela, saber o paradeiro do filho parece já ser um troféu.
A família, porém, deve se manter atenta: mesmo que a criança tenha largado de fato as drogas, as consequências podem ser irreversíveis. O pediatra João Becker Lotufo, que atua no Hospital Universitário da Univerisdade de São Paulo (USP) e é coordenador do Projeto Anti Tabágico da instituição, lembra que o cérebro ainda está em formação na infância, e cita inúmeros problemas que o uso acarreta ao sistema nervoso:
– Pode provocar retardo mental, desenvolver esquizofrenia, surtos e algumas lesões cerebrais sem volta – explica.
O médico conduziu um estudo com dados relevadores sobre a infância brasileira e o uso de drogas. Segundo ele, 25% dos jovens até 17 anos já fumaram cigarro, 20% deles já experimentaram maconha, 60% fizeram uso de álcool e 6% de crack. A forma de reverter estes índices deve ser trabalhada dentro de sala de aula e em casa, principalmente. A equipe da USP visita escolas da região de São Paulo no projeto Dr. Bartô, que tenta retardar o acesso dos jovens às drogas.
– Se fala no Brasil em tolerância zero às drogas, mas a gente tem de evitar, primordialmente, o contato até os 17 anos. Os governos atuam nas cracolândias, mas veja o custo disso. Se estas crianças têm apoio antes, elas não vão precisar disso depois. O uso de drogas precoce também é responsável por gravidez indesejada, que ocasiona a síndrome alcoólica fetal (danos físicos e mentais causados ao feto devido à exposição ao álcool enquanto ainda estava no útero da mãe) – acrescenta o médico.
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