A reintegração de posse de 70 famílias da Ocupação Lanceiros Negros que ocorreu no início da noite desta quarta-feira no centro de Porto Alegre fez o Ministério Público e a Defensoria Pública perceberem a necessidade de criar protocolo para esse tipo de ação no Rio Grande do Sul.
Embora a retomada do prédio do Estado na esquina das ruas General Câmara e Andrade Neves tenha sido realizada com consenso do MP, o promotor de Justiça da Ordem Urbanística Cláudio Ari Mello avaliou que falta planejamento para atender as famílias após a desocupação. Um reunião será realizada na semana que vem para reivindicar a criação de um método que minimize o impacto às famílias desabrigadas.
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– O protocolo é um conjunto de regras que procuram aumentar a proteção às pessoas que serão retiradas de uma ocupação. Precisa definir para onde levá-las, quanto tempo vão ficar no espaço determinado e se vai haver atendimento de assistência social. Ontem tivemos que fazer contato com uma ONG para fornecer comida, porque não havia um planejamento para isso – avaliou o promotor.
A reintegração foi uma determinação da 7ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, que permitiu o cumprimento da decisão após horário de expediente por se tratar de um prédio público no centro da cidade onde há grande circulação de pessoas e de veículos: "Dada a excepcionalidade da medida, que envolve imóvel situado no centro da Capital, onde há muito movimento durante a semana, autorizo o cumprimento da ordem aos feriados, finais de semana e fora do expediente, se necessário, evitando o máximo possível o transtorno ao trânsito de veículos e funcionamento habitual da cidade", diz a decisão.
Defesa questiona legalidade de horário
O grupo de advogados que atua voluntariamente a favor da ocupação questionou o fato de a reintegração ter ocorrido à noite. Com base no artigo 5º da Constituição Federal, o advogado Diogo Silveira defende que a ordem judicial deveria ser cumprida durante o dia, já que a lei prevê horário para cumprimentos judiciais em domicílio.
– Na atual circunstância, o prédio funcionava como moradia, ainda que temporária, daquelas famílias. Essa medida não poderia ter sido cumprida dessa forma, o ideal é que fosse durante o dia, para que as famílias pudessem se organizar – defendeu Silveira.
O promotor Mello entendeu que a decisão foi cumprida dentro da legalidade, uma vez que não existe nenhuma norma jurídica dizendo que prédio público ocupado pode ser considerado moradia.
– O que a Constituição fala é domicílio, não existe nenhuma decisão judicial do Superior Tribunal de Justiça impedindo que a reintegração de posse tenha prosseguimento nessas condições – explicou o promotor.
Como não se trata de domicílio, a ação foi amparada no artigo 212 do novo Código de Processo Civil. Segundo a legislação, se os atos processuais se iniciarem antes das 20h, podem continuar ocorrendo após o horário, sejam eles "autorizações judiciais, citações, intimações ou penhoras". Como a reintegração começou às 19h, pelo orientação do CPC, ela poderia ter seguido durante a noite.
A decisão foi tomada em conjunto entre o Ministério Público, o governo do Estado e a Brigada Militar. Mello disse que cogitou a possibilidade de fazer um isolamento da área durante a noite e retirar as famílias pela manhã. Mas, a última tentativa de reintegração que ocorreu durante o dia, em maio do ano passado, foi frustrada pela aglomeração de movimentos sociais.
– Uma desocupação dessa é diferente porque é num prédio público no Centro. É sempre uma situação de crise e de difícil decisão. Mas tentamos evitar o risco de tensão e violência – avaliou o promotor.
Caso chegou à Justiça em 2015
O processo judicial envolvendo a Ocupação Lanceiros Negros se iniciou em dezembro de 2015. Uma primeira ordem de reintegração de posse foi determinada pela 7ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre no ano passado. O grupo de advogados voluntários que defende as famílias tentou reverter a decisão com recurso impetrado no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). A turma de desembargadores que analisou o pedido em fevereiro manteve a decisão judicial da primeira instância.
Três meses depois, o Estado ensaiou cumprir a decisão, mas a defesa conseguiu protelar a ação da polícia com um recurso especial encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça. O STJ por sua vez, atribuiu efeito suspensivo ao recurso, o que durou alguns meses.
Uma rodada de negociações foi encaminhada pela Justiça, mas nem o movimento e nem Estado aceitaram negociar. Como não houve acordo, a Justiça determinou novamente a reintegração do imóvel, na última segunda-feira. Os advogados tentaram recorrer ao STJ mais uma vez, mas o recurso ainda não foi analisado. Enquanto isso, o TJ determinou na tarde de ontem que a decisão da 7ª Vara da Fazenda fosse cumprida.
Após a determinação judicial, o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul tentou impedir a reintegração enviando uma carta de recomendação formal ao governo do Estado. No documento, o órgão solicitou que o Estado apresentasse solução de moradia digna às famílias ocupantes.