Reportagem veiculada neste domingo pelo programa Fantástico, da TV Globo, divulgou gravação na qual o promotor Joel Dutra, um dos responsáveis pelo início das investigação do incêndio da boate Kiss – ocorrido em 27 de janeiro de 2013 e que deixou 242 mortos –, falou sobre supostas falhas na fiscalização da boate pelos bombeiros e que tinha "certeza" de ter ocorrido "mutreta" na prefeitura de Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul.
De acordo com a reportagem do Fantástico, as falas de Dutra foram registradas durante reunião entre promotores e familiares de vítimas do incêndio, em junho de 2013, cinco meses após a tragédia, na sede do Ministério Público Estadual (MP) em Santa Maria. O autor da gravação foi o vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Flávio Silva.
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Pai da jovem Andrielle, morta aos 22 anos no incêndio, Flávio disse que começou a gravar as reuniões que ocorriam no MP depois que os promotores decidiram denunciar, em abril daquele ano, apenas oito das 28 pessoas, entre empresários e agentes públicos, apontados pelo inquérito policial como responsáveis pela tragédia.
– A gente viu que a coisa estava tomando um caminho que não era o caminho certo, caminho que a gente achava que deveria ser tomado – afirmou Flávio ao Fantástico.
Em um dos trechos da gravação, o promotor afirmou que suspeitava da influência de Mauro Hoffmann, um dos sócios da boate, na fiscalização que deveria ser realizada pela prefeitura de Santa Maria:
"Eu tenho esse sentimento que o senhor tem. O Mauro, o Kiko (Elissandro Spohr, o outro dono da Kiss) até não sei, mas o Mauro, que é um cara mais antigo na noite, tem influência e tal. Que ele tem conhecido lá (na prefeitura) e que tem mutreta lá dentro, isso eu tenho certeza que aconteceu. Mas como é que vou provar isso?"
Ao Fantástico, Dutra confirmou o que disse:
– A certeza que eu tinha dessa mutreta, eu continuo (tendo), acho que ainda tem algumas mutretas.
Questionado sobre se não era seu papel, enquanto promotor, abrir uma investigação sobre as suspeitas que tinha, Dutra afirmou que já havia investigação conduzida pela Polícia Civil e que está à disposição de qualquer servidor da prefeitura que resolva fazer delação para apurar as supostas irregularidades.
O inquérito da Polícia Civil sobre o incêndio apontou "indícios da prática de improbidade administrativa por parte de servidores públicos", incluiu integrantes da prefeitura. Apesar disso, em março do ano passado, a promotoria de Santa Maria recomendou arquivamento do inquérito que apurava responsabilidades do então prefeito da cidade, Cezar Schirmer – atual secretário Estadual da Segurança Pública –, de dois secretários municipais e dois funcionários da prefeitura. Em novembro, o Conselho Superior do Ministério Público acatou a sugestão e sepultou a investigação.
Schirmer afirmou ao Fantástico que nunca teve conhecimento da declaração do promotor e que nada de errado foi encontrado durante sua gestão. A administração atual da prefeitura de Santa Maria afirmou, em nota, que abriu sindicâncias para apurar faltas funcionais e crimes, mas nunca foi consultada por Dutra. O texto afirmou ainda que a gestão municipal vê com "perplexidade" a fala de Dutra, e que se "um promotor público tem convicção de que existem 'mutretas' no serviço público, e não faz nada a respeito, está, de certa forma, corroborando para que a impunidade se perpetue".
Também por nota, o MP afirmou sobre a gravação que "não há qualquer elemento que aponte irregularidade".
Em outro trecho das gravação, o promotor enfatiza a responsabilidade dos bombeiros no caso: "Teve falha administrativa? Teve, mas a principal falha foi dos bombeiros. Porque, assim, ó: existe uma 'leizinha' municipal que prevê que não pode ter material inflamável dentro da boate, e os bombeiros não deram bola pra isso, simplesmente ignoraram. Quer dizer, se os bombeiros tivessem incluído isso no SIGPI (Sistema Integrado de Gestão e Prevenção de Incêndio), aquele 'artiguinho' da lei, e tivessem ido lá ver aquela espuma, não teria acontecido absolutamente nada. E ninguém está se dando conta da extensão que é da responsabilidade dos bombeiros, entende?".
Dois anos e meio depois da reunião gravada pelo vice-presidente da AVTSM, o promotor Joel pediu a absolvição dos soldados que fiscalizavam a boate por entender que só os comandantes da corporação da ocasião são culpados.
– Os soldados não podem ser denunciados por isso, porque eles obedecem ordens. Quem tem que ser denunciado, e foram denunciados, são essa três pessoas – argumentou Joel à reportagem da Rede Globo.
Da denúncia original do MP, só um dos relacionados foi condenado em processo secundário e teve a pena convertida em serviços comunitários. Em paralelo, na Justiça Militar, três bombeiros receberam sentenças, mas recorrem em liberdade. Nenhum dos apontados pela tragédia que resultou na morte de 242 pessoas está preso.
Além de Mauro e Kiko, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira, são réus por homicídio no incêndio, mas recorrem em liberdade da decisão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) que manteve o entendimento da primeira instância e determinou que os quatro sejam julgados pelo Tribunal do Júri.