Jornalista, escritor e ex-deputado federal, Fernando Gabeira acompanhou de perto o processo de redemocratização brasileira após o regime militar. Aos 76 anos, o mineiro se pergunta: o que fizemos de errado?
Para responder a questão, Gabeira lançou Democracia Tropical, seu mais novo livro. A obra surgiu de um caderno de anotações preenchido durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, e que foi complementando com artigos publicados por ele na imprensa.
Democracia Tropical revela tanto do Brasil quanto de seu autor. Depois de arriscar a vida na luta armada, Gabeira foi preso e exilado, retornando ao país em 1979, como anistiado. Desiludido com as experiências socialistas, dedicou-se à literatura e à defesa das liberdades individuais. Era então o homem que desfilava sua saúde na praia de Ipanema metido apenas em uma minúscula tanga de crochê, gerando debates sobre racismo, tolerância e sexualidade. Mais tarde, ficou também conhecido como o principal líder do Partido Verde, discutindo publicamente a descriminalização das drogas.
O discurso de Gabeira já não traz mais qualquer traço de idealismo utópico, mas nem por isso ele se tornou uma figura menos popular – no Rio, por poucos votos não se tornou o prefeito em 2008. Ao longo de seu livro, analisa as quedas de Collor e Dilma, trata da ameaça da democracia pelo populismo e demonstra confiança nas investigações sobre a corrupção.
Seu novo livro, Democracia Tropical, fala sobre a situação atual da democracia no Brasil. Esse título se refere ao que exatamente?
O livro foi escrito com intenção de estimular um debate sobretudo entre as pessoas que fizeram o processo democrático a partir do fim da ditadura militar, que parece hoje uma reunião de pais quando observam que o filho chegou a certa idade, mas adentrou um caminho completamente equivocado, e então se perguntam o que fizeram de errado. A pergunta é essa: "O que fizemos de errado para que o processo democrático brasileiro, que teve um marco importante nas Diretas Já, chegasse ao ponto em que chegou?". O termo "democracia tropical" se refere a uma democracia com características singulares, típicas aqui do Brasil, como a multiplicidade de partidos, o tipo de campanha eleitoral e a ocupação da máquina pelos correligionários vencedores.
A primeira foto do livro mostra o senhor sentado no banco dos réus, por participar do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. O que esse episódio significa hoje para o senhor?
Há, no livro, um ou dois parágrafos sobre a luta armada, que é um momento encerrado. O uso da foto foi uma pontuação para esse momento, que não está mais presente na minha vida. O objetivo do livro é discutir os caminhos da democracia no Brasil, coisa que no passado nós subestimávamos, como uma forma superada de governo.
Era um momento em que o mundo estava polarizado pela Guerra Fria. Esse caminho da democracia talvez não fosse uma via visível com tanta clareza.
Não era. Foi amadurecendo com a falência de outras tentativas. Como o mundo era polarizado entre dois modelos, e um deles foi se revelando inadequado, a democracia ganhou peso.
No livro, o senhor afirma que não lembra de nenhum ano mais intenso do que 2016. Foi um ano que não acabou?
Esse ano continua, de certa maneira, porque foi o ano em que todo o edifício montado a partir da redemocratização e da luta pelas eleições diretas, o sistema político partidário e os próprios partidos, tudo isso foi colocado em xeque pelo início das investigações da Lava-Jato e, agora, por suas conclusões. O Brasil entrou em uma situação de mudança severa em 2016. As placas tectônicas se mexeram e vão se ajustar com o tempo.
O senhor diz que o PMDB precisa compreender "que não está chegando ao poder, mas preparando-se para sair dele com estragos menores nos seus cascos bombardeados pelos canhões da Lava-Jato". De certa forma, é contraditório que todos os partidos tenham seus quadros "bombardeados" e, mesmo assim, não surjam lideranças novas.
Isso é verdade. O que acontece é que, nesses casos históricos, um nível de renovação existirá, embora não apareça ainda. Com a proximidade de novas eleições, em 2018, um nível de renovação virá. Mas a história nunca recomeça do zero.
Uma parte desse sistema falido funciona como um húmus. Quando uma árvore cai, quando as coisas vão à terra, é para outras serem criadas. Sobrarão alguns feridos do processo anterior, e a possibilidade de renovação será dada pelos novos que virão articulando-se em uma aliança com os que sobreviveram.
O senhor acredita que, com os atuais meios de controle e transparência, não será mais possível a sobrevivência de um governo corrupto?
A transparência e a eficácia dos processos de investigação constituem um dos pilares para isso. Mas um segundo pilar ainda não está em pé: o fim da impunidade, sobretudo o fim do foro privilegiado. A combinação desses dois pilares não acabará com a corrupção, mas aumentará enormemente o risco dela. Ao analisarem o risco, muitos candidatos à corrupção recuarão.
No momento, há justiça, mas não punição?
Exato. E, quando você tiver investigação e punição articuladas e rápidas, o risco (que correrão os corruptos) aumentará muito.
Em seu livro, o senhor fala sobre a "esquerda bolivariana". É raro que alguém com um histórico progressista use a sério esse termo, muitas vezes negado pela esquerda e grafado até mesmo entre aspas. Para o senhor, o que é bolivarianismo?
Há poucos dias, estive na fronteira com a Venezuela. Fui examinar o movimento dos refugiados, que saem do país não por serem perseguidos politicamente, mas pela miséria. No século passado, tive a oportunidade de cobrir a ida dos albaneses à Itália, fugidos das circunstâncias difíceis do seu país. Os socialismos dos séculos 20 e 21 convergem no desastre econômico e político. Na verdade, o bolivarianismo, embora tenha sido mal teorizado, foi uma tentativa de recuperar o socialismo e chegar ao poder não mais pela luta armada, mas por um processo eleitoral de cunho populista.
Dentro desse processo, depois de ocupar o poder executivo, o objetivo é conquistar todas as instituições progressivamente, parlamento, Justiça e imprensa. Aqui, não conseguiram conquistar a imprensa, e, na Venezuela, apenas em alguns aspectos, pois pressionaram muito por meio das dificuldades na compra de papel. Mas, de qualquer maneira, as televisões foram muito atingidas, e a pressão sobre os jornalistas é muito grande.
O senhor considera a chegada do PT ao poder, de fato, um avanço do projeto bolivariano?
O PT tentou. Conseguiu maioria significativa no Congresso, primeiro por meio do mensalão, depois de outros expedientes. Tentou avançar na Justiça, indicando os ministros do STF, que, no entanto, não foram fiéis ao partido. O caso mais simbólico é o do Joaquim Barbosa, que foi escolhido por ser negro e teoricamente identificado com as posições de esquerda, mas que, quando foi solicitado a julgar, trabalhou como um técnico.
O partido também tentou controlar a imprensa por um mecanismo chamado "controle social da mídia". De alguma forma, a Constituição prevê algum controle, mas não houve avanço nesse ponto. Foi apenas uma ameaça.
No livro, o senhor lembra a primeira greve de que participou, imbuído do que George Steiner chamou de "sonho do absoluto", uma aspiração à justiça comum entre os jovens. Recorda que, se fosse criticado por quebrar regras, diria não se importar, pois estava "fazendo o bem". Mas conclui, hoje, que esse argumento é perigoso: pode descambar para a ideia de que os fins justificam os meios. Todo sonho do absoluto descamba para o absolutismo?
Sem dúvida. Uma das expressões desse sonho é também a ideia de um novo homem. O homem é mais ou menos o mesmo desde Shakespeare, pelo menos. É cheio de defeitos e qualidades, contradições, ambivalências. Essa tentativa de transformá-lo em algo rígido, perfeito, que não corresponde ao modelo, é muito difícil.
O senhor ainda acredita em alguma utopia?
Não. A questão agora é avançar na democracia, aprofundá-la de acordo com as possibilidades. A utopia deixou sangue pelo caminho. Ela é na verdade uma possibilidade permanente de sangue. Você coloca uma felicidade ampla da humanidade, e todos os obstáculos precisam ser destruídos.
Se você tem um projeto tão importante, tão decisivo para a humanidade, a destruição de qualquer coisa que se interponha acaba se justificando.
O marxismo já foi até encarado como um caminho inexorável a ser seguido.
Exato. Essa questão deve ser mais estudada.
Essa perspectiva de que você tem uma ciência exata para analisar a sociedade e com ela decidir o rumo das pessoas estimula certas deformações psicológicas. Um filósofo que defendia a cientificidade do marxismo era o Louis Althusser (1918 – 1990). Ele defendia uma visão de mundo racional e científica, mas que acabou estrangulando a própria mulher. Como Freud dizia, o reprimido aparece no repressor. O que você reprime volta, de alguma forma.
O senhor acompanhou de perto dois impeachments. Como comparar as saídas de Collor e Dilma?
O impeachment da Dilma teve um movimento popular mais estruturado. Já o do Collor contou também com um conjunto de forças que tinha condições de derrubá-lo mais facilmente.
Mas o comportamento dos deputados em relação aos dois processos é parecido. Eles utilizam o momento para fazer propaganda para suas bases. A diferença que senti desde o Collor até a Dilma é que o papel visual se tornou mais importante.
Os deputados ficaram mais preocupados em se expressar visualmente, lavando bandeiras, vestindo roupas típicas.
Isso também pode ter relação com o caráter fortemente visual das redes sociais?
Os smartphones marcam uma diferença grande entre as épocas. Quando nós derrubamos o monopólio das telecomunicações, deu-se meu primeiro grande rompimento com a esquerda.
Fui chamado de traidor, que estaria acabando com as empresas estatais no ramo das comunicações do Brasil. Mas elas não tinham condições de pesquisar, avançar e responder às necessidades da época. Era um movimento mais amplo, ao qual só grandes empresas internacionais tinham condições de responder. A queda desse monopólio permitiu que crescesse rapidamente o número de telefones celulares. Em seguida, vieram os smartphones.
E aí o Brasil avançou em algo que não avançara até então: a inclusão digital. Além disso, os smatphones permitiram que as pessoas, por meio das notícias, ficassem mais bem informadas, compartilhassem as informações e discutissem entre elas.
Mas esse debate também escorrega na questão da pós-verdade. As pessoas têm acesso à informação, porém, buscam ler e divulgar apenas o que confirma suas convicções, não exatamente buscando a verdade.
Existe esse problema. Esse é um dos elementos da própria decomposição política do país. As evidências já não importam tanto – o que tem importância são as versões. No livro, cito uma coletânea do Bruno Latour, em que o primeiro artigo é sobre isso. É um texto que coloca como grande inimigo da democracia isso que, mais tarde, seria chamado de pós-verdade: a prevalência das versões sobre os fatos, o que pode criar até mesmo a possibilidade de adulterar uma eleição. O resultado eleitoral, hoje, não depende apenas da qualidade do programa ou do candidato, mas da qualidade das falsas versões que você produz. O Trump teve essa ajuda em sua eleição nos Estados Unidos.
Como o senhor interpreta a chegada de Donald Trump à Casa Branca?
Creio que, tanto na eleição do Trump como na questão Brexit, pesou e pesa muito o fato de a globalização não ter produzido também perdedores. São esses perdedores da globalização que, basicamente foram os eleitores fiéis do
Trump. Regiões que estavam em decadência industrial, que já perderam competitividade internacional, deixaram muita gente saudosa do passado, dos "bons tempos". Tanto na Inglaterra como nos EUA havia muito dessa nostalgia.
Mas, a gente sabe, os tempos antigos não voltam. Por outro lado, houve certa incapacidade de percepção das elites intelectuais sobre o que estava pensando a população. Em um artigo, menciono algo que me impressionou muito: ver um cara gritando "foda-se o politicamente correto". O politicamente correto também criou muita oposição, acabou constrangendo muita gente. Seria necessário rever um pouco esses mecanismos para que o populismo não possa arrebatar de repente populações que ficam acompanhando o processo e se sentem alijadas dele. Mas a sedução do populismo continua presente em todas as eleições, inclusive a que está prevista para o ano que vem no Brasil.
O que o senhor espera do futuro eleitoral?
Ainda existe uma possibilidade muito grande de um choque de populismo e, como aconteceu na França há pouco tempo. E de a esquerda não participar de um eventual segundo turno em uma eleição direta, se ela continuar negando os fatos e sendo massacrada por estes. Por enquanto, o caminho para o populismo está muito atraente.
Não só o de esquerda, mas o de direita, que o Bolsonaro encarna, por exemplo. O populismo de esquerda, de fato, está um pouco enfraquecido. Todas essas promessas de felicidade que ele continha acabaram estourarando no governo Dilma. É uma experiência muito recente de fracasso.
Há o crescimento do populismo de direita, mais rígido em relação a gênero e comportamento. Por outro lado, há uma onda crescente de mulheres falando abertamente sobre situações em que sofreram machismo, bem como artistas e músicos assumindo e cantando sua transexulidade. Há uma revolução de comportamento em curso?
Sim. Não há dúvida disso. É preciso observar que, na história, alguns comportamentos que eram proibidos passaram a ser liberados, como o divórcio e o casamento gay, para ficar em dois exemplos. Mas há também os comportamentos que eram tolerados e passaram a ser proibidos. São movimentos diferentes. O assédio sexual era tolerado no passado, agora não é mais aceito.
Mas esses temas têm que ser conduzidos com alguma tranquilidade, para não assustar e criar maiorias mais sólidas contra suas ideias.
Um exemplo: o governo, como não tinha uma visão clara sobre isso, absorveu o movimento gay, que passou a orientá-lo nesse campo, só que aí o resultado foram aquelas cartilhas, que deram uma chance de reação muito grande ao populismo de direita. Elas não levaram em conta o fato de que as famílias, em muitos casos, gostariam de ter o privilégio de dar educação às crianças nesse campo. Era preciso um nível de negociação com as famílias, como, por exemplo, oferecer as cartilhas, mas deixando que elas optassem por usá-las ou não. São detalhes políticos importantes para que não haja uma reação muito grande contra o chamado politicamente correto.