Três dias antes de o bancário Ricardo Neis ir a júri popular pelo atropelamento de 17 ciclistas do grupo Massa Crítica em 2011, o debate "Vidas em trânsito" pôs em pauta questões como o impacto do trágico episódio na trajetória das vítimas, o andamento do processo judicial e as ações dos órgãos públicos para pacificar as vias de Porto Alegre.
A discussão ocorreu neste domingo, no StudioClio, na Rua José do Patrocínio, a mesma em que, no dia 25 de fevereiro de 2011, Neis se descontrolou ao deparar com uma pedalada do Massa Crítica. Com a passagem obstruída, ele acelerou seu veículo sobre dezenas de ciclistas, atropelando e arremessando ao ar 17 deles. O caso gerou comoção e as imagens chocantes daquele dia ganharam repercussão mundial.
No debate deste domingo, promovido pelo StudioClio em parceria com a Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (Mobicidade), um dos pontos mais comentados foi o risco que insiste em acompanhar o ciclista na Capital gaúcha.
Eduardo Iglesias, uma das vítimas de Ricardo Neis, abriu a noite de debates no StudioClio relatando situações corriqueiras em que veículos motorizados em alta velocidade tiram "fininho" do guidão da sua bicicleta, o que ele classifica como "atentados". Iglesias contou sobre a experiência de morar na Europa, onde usou quase que exclusivamente a bike como meio de transporte, vivendo de forma mais harmoniosa nas vias públicas em comparação com a rotina no Brasil. Especificamente sobre Porto Alegre, ele definiu o trânsito da cidade como "porco" e relatou as más condições das ciclovias.
Para Iglesias, o bancário Ricardo Neis "é o reflexo de tudo isso", numa referência ao pensamento belicoso de parte da sociedade contra o transporte alternativo.
Ele contou detalhes do período pós-atropelamento, em que sofreu problemas de saúde e também financeiros, já que teve de parar de trabalhar por meses.
– A bicicleta deveria ser idolatrada. Ninguém é contra o carro, mas a bicicleta é um carro a menos – declarou.
Ele ainda disse ser contra a existência das ciclovias, afirmativa que obteve acolhimento na manifestação de Alessandra Both, gerente de projetos e estudos de mobilidade da EPTC.
– Concordo que as ciclovias não deveriam ser necessárias, mas, hoje, elas são necessárias em função do desrespeito que sofremos – afirmou Alessandra, falando também na condição de adepta do ciclismo.
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Ela valorizou ações como o Bike Poa, estações de compartilhamento que registraram 870 mil viagens até novembro de 2016. Destacou que o aumento da malha cicloviária de Porto Alegre – hoje são 41 quilômetros – está diretamente relacionado à diminuição do número de acidentes. Em fevereiro de 2011, à época do atropelamento, não havia faixa exclusiva para ciclistas na Rua José do Patrocínio. Neste domingo, muitos deles chegaram ao debate no StudioClio pela via reservada pintada de vermelho – embora intervenções urbanas tenham ocorrido, as queixas quanto à qualidade do espaço oferecido são recorrentes.
– Neste ano, vamos ter uma redução muito significativa. Em cinco anos, reduzimos a média de 300 acidentes por ano para menos de 200 – informou Alessandra.
Antes da etapa das perguntas, houve a manifestação do diretor-geral do Detran, Ildo Mário Szinvelski, que destacou as barreiras culturais impostas às bicicletas em um mundo idealizado para os veículos motorizados.
Um dos focos da palestra do diretor foi a redução das mortes no trânsito do Rio Grande do Sul. Em uma das telas apresentadas por ele, havia destaque para a queda nas mortes de ciclistas no Estado: as 178 vítimas fatais de 2007 foram reduzidas para 91 em 2015.
Apesar da truculência observada no trânsito, o debate se pautou pela esperança de que é possível avançar para dias melhores no futuro.
O caso Ricardo Neis
Depois de provocar o atropelamento coletivo, quando jogou seu automóvel Golf sobre os ciclistas que estavam à frente, o bancário Ricardo Neis teve a prisão preventiva decretada em março de 2011. Pouco mais de um mês depois, obteve liberdade provisória. O Ministério Público acusa Neis por 11 tentativas de homicídio e cinco lesões corporais. É por esses crimes que ele responderá na quarta-feira, a partir das 9h, na 1ª Vara do Júri da Capital, no Foro Central. Em junho de 2012, uma sentença determinou que o caso fosse julgado pelo Tribunal do Júri, que é composto por sete cidadãos da sociedade civil. Julgamentos neste formato costumam ocorrer quando se trata de crime doloso contra a vida. Depois de ouvir as teses de acusação e defesa, caberá ao júri popular decidir se o réu é culpado ou não. Em caso afirmativo, de decisão em favor da condenação, a dosimetria da pena é responsabilidade do juiz.
A defesa de Neis recorreu ao Tribunal de Justiça e ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, mas as decisões mantiveram o julgamento popular. A partir de fevereiro deste ano, por ser considerado de relevância social, o processo passou a ser acompanhado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul. O objetivo da medida foi dar maior celeridade à tramitação.