Vítima de abuso sexual desde os 11 anos, cometido pelo pai dentro de casa ou em viagens de caminhão, a adolescente humilhada pelo promotor Theodoro Alexandre da Silva Silveira saiu da sala de audiência em Júlio de Castilhos chorando e quase desmaiou.
O fato ocorreu em 20 de fevereiro de 2014, quando a vítima tinha apenas 14 anos, já sofrera um aborto ao 13, por conta da gravidez causada pelo pai, e passara por duas internações em abrigos. A jovem franzina havia acabado de mudar sua versão e negar, perante a juíza Priscila Gomes Palmeiro, que o pai fosse o abusador. Em resposta, ouviu o seguinte do promotor:
– Pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é autossuficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Tu é uma pessoa de sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá.
A jovem estava mergulhada em uma tentativa desesperada de normalizar a vida familiar, atingida desde a descoberta dos abusos, em novembro de 2012. Foi nessa época que o Conselho Tutelar conseguiu que a menina contasse detalhes do que sofria. A rotina da jovem já chamava a atenção na escola: faltava demais, chorava. Até que contou tudo. Um processo foi aberto na Justiça e a Polícia Civil começou investigação.
A prisão preventiva do pai foi solicitada, mas a juíza entendeu desnecessária. Determinou o afastamento dele de casa e o proibiu de se aproximar da filha a menos de 100 metros. O abusador saiu de casa e passou a morar quase ao lado, na casa de um familiar. Depois, foi para uma pousada.
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Em novembro de 2012, a vítima ficou por 11 dias sob proteção, em um abrigo. Foi nesse período que realizou o aborto autorizado pela Justiça, Na decisão, a juíza Priscila determinou que material genético do feto fosse guardado para eventual futuro teste de DNA. Ao sair do abrigo, a jovem ficou aos cuidados de uma tia.
Em março de 2013, foi novamente acolhida em abrigo, onde recebeu atendimento psicológico. Menos de um mês depois, saiu do abrigo com determinação de que o atendimento psicológico fosse mantido. O processo que visava às medidas de proteção foi arquivado na Justiça em abril de 2013. O Tribunal de Justiça (TJ) informou que por se tratar de processo com segredo de Justiça não pode dar mais detalhes do caso nem dizer se a vítima seguiu com algum acompanhamento da rede de proteção à Infância e Juventude desde então.
O processo contra o pai abusador prosseguiu. Dias antes da audiência de interrogatória da vítima, ela e a mãe procuraram o advogado que defendia o pai para mudar a versão. Diziam que a menina engravidara de um namorado e inventara a versão contra o pai por temer a reação dele ao saber do namoro. O que as duas disseram ao advogado Márcio Garlet foi gravado e anexado ao processo. Então, quando a vítima chegou na audiência, juíza e promotor já sabiam que haveria a tentativa de mudança de versão.
Pressão familiar teria motivado mudança de versão
Inclusive, antes do depoimento, o acusado manifestou que queria fazer exame de DNA e foi alertado pelo advogado sobre consequências do resultado. O réu chorava e alegava inocência. Zero Hora apurou que o promotor chegou a comentar que se o teste desse negativo, ele pediria a absolvição do réu das acusações de abuso. Já a juíza teria dito que se fosse positivo, daria pena máxima. E então a vítima sentou diante das autoridades, com a mãe ao fundo da sala de audiências, e mudou a versão. Sustentou que o pai do bebê era um namorado de escola, mas que não revelaria o nome.
Foi quando passou a ouvir as ofensas do promotor. Foi acusada de criminosa e ofendida, humilhada. Ameaçada de ser mandada para a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) para sofrer estupros. Ouviu que iria para cadeia. Ouviu tudo e se manteve firme na meta de livrar o pai da cadeia.
"Se percebe que a vítima não contava com apoio da mãe, a qual somente possuía interesse em resolver o problema, preocupando-se apenas em como iria sobreviver caso o réu fosse preso e como sua família seria vista na comunidade", escreveu a desembargadora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos em acórdão da 7ª Câmara Criminal do TJ. A pressão da família foi confirmada à Justiça por outra familiar, que também sofrera abusos do réu. Aliás, o réu tem histórico de abusos em família. Tem um filho com uma meia-irmã e teria tentado abusar de uma enteada.
Foi somente ao sair da sala que a vítima quase desabou. Foi embora ao lado da mãe. O promotor seguia exaltado. Em setembro de 2014, ficou pronto o exame confirmando que o réu era o pai do bebê que a vítima esperava. Com a confirmação, o advogado que o defendia desistiu da defesa. ZH procurou Garlet, que disse que não poderia comentar detalhes por conta do sigilo, mas que, se for chamado como testemunha, contará a verdade sobre o que ocorreu naquela audiência de 2014.
Depois de ameaçar a filha e rondar a escola, pai teve prisão decretada
Em abril de 2015, foi registrada ocorrência policial informando que o réu estava ameaçando a vítima. ZH apurou que ele rondava a casa e a escola. Pessoas próximas à família contam que ele tinha ciúmes doentio da menina, já que tinha sido responsável por lhe tirar a virgindade. Por causa da perseguição, o réu teve prisão preventiva decretada e foi preso.
A sentença condenatória só foi emitida quase um ano depois, em maio de 2016. O réu foi condenado a 27 anos de prisão. Foi graças ao recurso da defesa dele que o processo chegou à 7ª Câmara do TJ, onde a humilhação sofrida pela vítima em 2014 foi percebida e criticada com veemência. Desembargadores provocaram as corregedorias do Ministério Público e do Poder Judiciário a investigarem a conduta do promotor e da juíza. Em Brasília, a Corregedoria do Conselho Nacional do MP foi mais rápida e abriu investigação antes mesmo de receber a documentação com o pedido oficial.
O pai abusador teve a pena reduzida para 17 anos e segue preso. O promotor e a juíza não quiseram falar do caso ainda. O Conselho Tutelar de Júlio de Castilhos não sabe informar a situação da adolescente, se segue com algum acompanhamento da rede de proteção. Um dos conselheiros insistiu por duas vezes que o Conselho não tem nada a ver com o caso e que só o Judiciário pode falar. O TJ não dá detalhes alegando segredo de Justiça.
O MP se manifestou nesta sexta-feira definindo a conduta de Theodoro como um "erro". E deu férias de 30 dias ao promotor.
* Zero Hora