Enquanto a prefeitura delega a função ao Estado e este diz que não é mais o seu dever, centenas de porto-alegrenses veem o sofrimento de perder um parente multiplicado pela demora nos trâmites burocráticos para a emissão do atestado de óbito. No último domingo, Zero Hora denunciou um impasse que vem causando mal-estar entre os poderes, e que atingiu seu ápice em agosto deste ano.
Há cerca de um mês, o Departamento Médico Legal (DML), que até então fazia a verificação de óbitos não violentos para os municípios, passou a restringir o serviço, afirmando que a função é da prefeitura. A secretaria municipal de Saúde da Capital, entretanto, alegou que não tem condições de oferecer o serviço à população, e que o Estado "abriu mão de suas responsabilidades".
– Eu vou ter que deixar de atender pessoas para fazer isso – disse a ZH o secretário de Saúde de Porto Alegre, Fernando Ritter.
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Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), Rogério Wolf de Aguiar comentou que o impasse é causado por ambiguidades na legislação, que responsabilizaria as três esferas públicas (município, Estado e União) pela ausência de um serviço de verificação de óbitos. Autoridades consultadas por ZH, entretanto, foram unânimes ao afirmar que a atribuição recai sobre o município:
– A lei não é taxativa, mas por uma interpretação lógica e de bom senso, chegamos até as prefeituras. Em casos na qual se necessita a intervenção de um médico legista, quem emite o atestado é o DML. Se a morte ocorre no âmbito hospitalar, a responsabilidade é do médio assistente. No caso de morte em casa, sem sinal de violência, a função é do município, que deve oferecer o serviço pelas Unidades Básicas de Saúde, por exemplo – explica o advogado Imar Santos Cabeleira, presidente da Comissão Especial de Saúde da OAB/RS.
Cabeleira se refere à resolução mais recente do Conselho Federal de Medicina, de 2005, e à da portaria do Ministério da Saúde, de 2009:
– Ambos dizem que, em caso de morte natural, não havendo suspeita de agente externo e fora do ambiente hospitalar, o registro deve ser feito por um médico do serviço público de saúde mais próximo. Ou seja, é uma atribuição do município.
O secretário estadual de Saúde, João Gabbardo dos Reis, explicou que o DML atendia mortes não violentas "mesmo não sendo obrigação legal", mas que o aumento da criminalidade tornou a ação inviável. A decisão foi tomada por causa da reorganização da estrutura da Secretaria de Segurança Pública.
Marcelo Bósio, Secretário de Saúde de Canoas e presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado (Cosems/RS),explica que, uma vez que a atuação do DML diminuiu gradualmente devido à sobrecarga, a maioria dos municípios do Estado já vêm se organizando há anos para prestar o serviço. Conforme Bósio, o problema da Capital está na dificuldade da prefeitura de encontrar uma forma de assumir o serviço:
– Em Porto Alegre, o impasse está mais em como organizar a transição do que a dúvida de quem é a responsabilidade.
O representante do governo do Estado disse que foram feitas reuniões de negociação, mas o município "resolveu não fazer o que estava combinado" e levar o caso ao Ministério Público.
Problema antigo, solução distante
O caso chegou ao MP, que afirma que o impasse não é recente. Conforme a promotora de direitos humanos Liliane Dreyer Pastoriz, existe um inquérito civil instaurado desde 2012 sobre o tema, em que um poder reivindica a responsabilidade ao outro.
– O cenário ideal, previsto por lei, seria a criação de um Serviço de Verificação de Óbito (SVO) em cada cidade, com médicos dedicados especialmente ao tema. Este serviço só existe, entretanto, em 11 municípios do país – explica.
Para os demais, o que vale são as resoluções do CRM e Ministério da Saúde. Em Porto Alegre, existia um acordo verbal, mas não formal, entre Estado e município, na qual o DML vinha fazendo o serviço sob determinadas condições.
– Para o DML agir, as pessoas precisavam ir à delegacia e fazer uma ocorrência, o que gerava um inquérito policial fictício, porque não tinha nenhuma causa de morte violenta. A partir daí, o DML emitia o atestado. Era um procedimento irregular – explica a promotora.
Só que, conforme Liliane, em agosto deste ano, por questões de falta de recursos financeiros e, principalmente, humanos, o DML passou a exigir inquéritos policiais "reais" para começar a agir:
– O departamento disse que pode continuar fazendo, mas para isso passou a exigir um inquérito real, na qual familiares e médico precisariam ser ouvidos como testemunhas, o que aumenta o tempo de duração do processo e a burocracia.
Foi aí que se intensificou o impasse entre os poderes. De acordo com Liliane, a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) deveria fazer a mediação entre as secretarias para chegar a um consenso. Como o impasse não foi resolvido, a questão chegou ao Ministério Público, que deve realizar uma audiência ainda neste mês para tentar uma conciliação entre os poderes:
– Vamos tentar fazer uma pactuação sobre o que será feito nos próximos meses. O ideal seria que o município destacasse médicos plantonistas para fazer esse serviço – afirma Lilian.
Na ausência de acordo, a promotora aconselha a população a recorrer a uma das duas vias possíveis: ou a família procura uma delegacia, registra o inquérito policial para o atestado ser emitido pelo DML, ou busca um médico do Serviço Público de Saúde mais próximo