Meio de transporte utilizado diariamente por cerca de 200 mil pessoas entre Porto Alegre e Novo Hamburgo, o trensurb tem apresentado sequência de falhas que atrapalha a vida dos usuários. Especialmente pelo aumento de viagens perdidas.
Dados obtidos com exclusividade pelo Diário Gaúcho mostram que o número de viagens perdidas dobrou em dez anos. Os índices saltam em 2015, o que coincide com a chegada da nova frota.
Segundo a empresa, é justamente a nova tecnologia dos veículos que tem demandado mais trabalho de adaptação ao sistema.
A diarista Selma de Melo, 52 anos, perdeu uma consulta marcada havia dois meses com o cardiologista no posto de saúde do Bairro Mathias Velho, em Canoas, devido ao atraso de um trem quando retornava de uma noite de trabalho em Porto Alegre, na manhã de uma segunda-feira do mês passado.
Outra demora fez a operadora de caixa Jéssica Jesus da Rosa, 22 anos, do Bairro Guajuviras, em Canoas, chegar 20 minutos atrasada ao trabalho recentemente, com o constrangimento de se justificar por algo que não pode controlar.
Diariamente, essas situações se repetem mais do que deveriam. Por semana, são perdidas, em média, 13 viagens devido a problemas mecânicos no trensurb. O dado, obtido via Lei de Acesso à Informação e que é referente aos primeiros quatro meses de 2016, não leva em conta o tempo de espera pelo atraso das partidas das viagens efetivadas.
São minutos que impactam a vida das 200 mil pessoas transportadas todos os dias no trajeto entre Porto Alegre e Novo Hamburgo.
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Os problemas que Selma e Jéssica enfrentaram se explicam com o avanço de atrasos e viagens perdidas nos últimos anos.
Os dados mostram ainda que a cada 144 viagens feitas em 2015, uma foi perdida. Proporcionalmente, este número é 90% maior do que há dez anos – em 2006, era uma perdida a cada 275 realizadas. Em números absolutos (302 contra 597), o aumento é de 97%.
Salto em 2015
O maior salto ocorreu em 2015, quando 597 viagens programadas deixaram de ser feitas por falhas mecânicas. Levando em conta que cada trem tem capacidade para transportar até 1.080 passageiros, foram 644 mil pessoas a menos viajando. Só nos primeiros quatro meses de 2016, foram 224 viagens perdidas, uma média de quase duas viagens não feitas todos os dias.
É por esse motivo que as amigas Elaine Nascimento, 53 anos, e Marisa Freitas, 55 anos, saem dez minutos mais cedo de casa todas as manhãs. Ficam mais tempo na Estação Mathias Velho, mas diminuem as chances de chegarem atrasadas na Capital. Chegam às 6h40min com a expectativa de embarcar até as 6h50min, em uma faixa de horário na qual o intervalo não poderia passar de 5min.
Cozinheira em um restaurante no Centro, Elaine precisa chegar até as 7h30min:
– Chegar atrasada é chato, tem que dar explicação por algo que a gente não tem culpa.
Pela meta da Trensurb, os trens não poderiam atrasar mais do que 13 minutos em um mês. Em 2015, porém, os atrasos mensais chegaram a 21 minutos.
Já as viagens perdidas não poderiam ser mais de 15 a cada 30 dias. Em 2015 chegaram à marca de 49. De janeiro a abril deste ano, a média mensal chega a 56.
Quando a demora vem acompanhada pela superlotação
A ida ao trabalho é o momento de maior estresse para Jéssica. Ela pega o trem na Mathias Velho no horário em que o intervalo entre um veículo e outro deveria ser de três minutos. Nem sempre é.
– É horrível, porque além de chegar atrasada no trabalho, o trem vem lotado. É muita gente, as pessoas acabam se estressando porque acham que tu está empurrando. Às vezes, dá briga – relata.
Quando perdeu a consulta com o cardiologista, Selma saiu às 6h do Bairro Assunção, na Zona Sul de Porto Alegre, com expectativa de chegar com folga até as 9h, horário da consulta no posto do Bairro Mathias Velho, onde vive:
– O trem teve um problema. Fiquei esperando e acabei chegando no posto às 9h30min. Perdi a consulta.
Ainda assim, ela se preocupa mais com os atrasos quando retorna de Porto Alegre, à tardinha:
– Quando o trem atrasa, fico com muito medo. Moro a nove quadras da estação e às vezes vou a pé. É perigoso.
Nesse período, o intervalo entre uma partida e outra, segundo a tabela de horário da Trensurb, não pode ser maior que sete minutos. A costureira Marisa Freitas, 55 anos, do Bairro Mathias Velho, garante que frequentemente esse período ultrapassa os dez minutos.
Transtorno
O transtorno do passageiro cresce no mesmo ritmo que os números. Em 2012, ano em que obteve o melhor desempenho em minutos de atraso nos últimos dez anos, foram 105 minutos pedidos. Se comparado aos 256 de 2015, houve um aumento de 143% de tempo perdido para o usuário.
Apenas de janeiro a abril de 2016, já foram 155 minutos perdidos. São quase três horas – número maior que o registrado em todo o ano de 2014.
Tecnologia exige período de adaptações
Por ironia, as viagens perdidas dispararam em 2015, junto com o primeiro ano de operação de 15 novos trens adquiridos pela Trensurb em 2014, com o objetivo de modernizar a frota e trazer mais conforto aos usuários. O assessor da Diretoria de Operações, Carlos Augusto Belolli de Almeida, admite que as falhas têm relação direta com os novos veículos.
Com a tecnologia na qual os sistemas elétrico e eletrônico são interligados, toda a vez que um veículo demanda ajustes, todo o resto do sistema é impactado.
– Se eu mexer em uma linha de comando, isso vai impactar diretamente no painel de controle da abertura de portas, por exemplo. Esses ajustes são um processo comum nos primeiros dois anos de adaptação de novos sistemas – explica.
Enquanto os trens da série 100 (antigos) apresentam indicador médio de uma falha a cada 7 mil quilômetros percorridos, os novos apresentam falha a cada 700km.
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O doutor em engenharia e especialista em ferrovias José Manoel Ferreira Gonçalves avalia que a quantidade de perdas é exagerada, mesmo levando em conta os ajustes nos trens novos:
– Se houvesse uma manutenção corretiva e preventiva, e um programa de acompanhamento, poderia ser diferente.
Para o consultor de transportes sobre trilhos Peter Alouche, as causas das viagens perdidas também podem estar relacionadas a uma maior demanda de passageiros, à qualidade dos equipamentos e a questões operacionais como a preparação dos funcionários.
Clima também influencia
Os minutos de atraso não têm relação com as viagens perdidas. O atraso pode ocorrer por um sistema que está apresentando falhas no horário da partida ou mesmo por uma adversidade no caminho. Um exemplo é o problema no sistema de portas.
– Cada trem abre 16 portas por vez em cada uma das 23 estações. Imagina quantas vezes as portas são abertas por dia, isso demonstra um grau de exigência mecânica pela repetição – diz Carlos.
Os motivos podem também não estarem vinculados diretamente ao equipamento. Influencia também o clima, como nos dias de chuva e neblina. Por isso, Carlos afirma que os atrasos são mais difíceis de evitar do que as viagens perdidas.
Os investimentos na compra de peças de manutenção caíram no mesmo ano em que as viagens perdidas dispararam. Dos R$ 5,5 milhões investidos em 2014, o valor reduziu para R$ 4 milhões em 2015. Carlos justifica que é possível que o cronograma de manutenção de 2014 tenha incluído revisões a mais do que no ano seguinte.
Consequência das falhas mecânicas
Trens de volta a partir de segunda
Com o retorno dos novos trens para a operação após ficarem dois meses em recall devido a um problema na tampa de vedação das caixas de rolamentos, inicia um novo ciclo de adaptação que poderá necessitar de ajustes, adianta Carlos. Na segunda-feira, voltará o primeiro dos 15. Após, entrará em operação um a cada 20 dias.
Segundo Carlos, o custo do recall e todos os impactos no orçamento da Trensurb referentes aos dois meses em que ficaram fora de operação será repassado ao consórcio responsável pela implantação dos trens, o FrotaPOA, formado pelas empresas Alstom e CAF.