Lâminas negras ou verde musgo pairam sobre a água. Lixo, odor forte, borbulhas na superfície. Quando o biólogo Mário Moscatelli lança o remo em direção ao solo, percebe-se que a profundidade não passa de 20 centímetros. O fundo está tomado por esgoto e sedimentos. Moscatelli remexe por debaixo do manancial e traz, na pá do remo, uma amostra da realidade do sistema lagunar da Barra e de Jacarepaguá, no Rio. O solo se tornou um mar de lama escura e pastosa, resultado do longo processo de decomposição dos detritos lançados naquelas lagoas. A ação do remo no fundo da água provoca borbulhar intenso, como se aquilo tudo fosse um caldeirão escaldante.
– As borbulhas são os gases que vem do fundo pútrido, onde não há mais oxigênio. Esses gases são o subproduto da decomposição da matéria orgânica do esgoto em um ambiente que não tem mais capacidade para suportar tanto detrito. As lagoas do sistema viraram uma latrina, um penico raso, para tanto esgoto que vem dos rios e da região da Baixada de Jacarepaguá – explica Moscatelli.
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A matriz olímpica – documento apresentado na candidatura carioca para a realização dos Jogos – prometia uma transformação. Como legado ambiental, o governo estadual deveria retirar, em processos de dragagem, 5,7 milhões de metros cúbicos de detritos do fundo das águas. O tempo passou e os entraves se multiplicaram devido a uma denúncia de cartel para a realização dos serviços. Os órgãos de fiscalização não liberaram o andamento breve do projeto, a crise financeira chegou e os recursos disponíveis foram consumidos com o pagamento de salários atrasados de servidores públicos. O sonho acabou.
– É mais um que fica pelo caminho, sem data para ser realizado – lamenta o biólogo ao navegar pelas águas.
O sistema da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá é formado por quatro lagoas: Marapendi, Tijuca, Camorim e Jacarepaguá. Essa última fica ao lado do Parque Olímpico, principal local de disputas. Moscatelli explica que, dependendo da força e direção do vento, o aroma desagradável poderá ser sentido na área externa das arenas de competições, chegando a turistas e atletas. É o que o biólogo chama de "cheiro de ovo podre".
Consideradas patrimônio ambiental, as lagoas seguem degradadas, sem o processo de recuperação. Há pouca vida animal por ali. É raro ver algo diferente de capivaras e urubus brancos. À margem da Lagoa da Tijuca, uma das mais poluídas, está a favela Rio das Pedras, com seus mais de 50 mil habitantes.
A frustração se estendeu também aos planos feitos para a Baía da Guanabara, que sediará as competições olímpicas de vela. A promessa era tratar 80% do esgoto que deságua no local, mas a palavra não foi honrada. As obras de saneamento ficaram no papel. O jeito será improvisar. Na quarta-feira passada, o secretário estadual do Meio Ambiente, André Corrêa, afirmou que estão em execução medidas de limpeza do lixo flutuante, com o emprego de ecobarreiras e ecobarcos, para não inviabilizar as provas. Ele disse que todas as áreas de competição da baía "estão em condições boas para contato primário".
O que ficará depois dos Jogos
É corriqueiro flagrar cariocas conversando sobre a proximidade dos Jogos, como dois vendedores que, sob uma sombra na praia de Copacabana, discutiam a respeito da suposta impopularidade de modalidades como luta greco-romana e tênis de mesa, que chamavam de pingue-pongue. Nos bate-papos, uma pergunta é a mais suscitada: "O que acontecerá depois da Olimpíada?".
Há projeções de que a prefeitura, até então preservada dos efeitos mais negativos da crise que afeta o Estado, será atingida por uma depressão econômica, com contas a pagar, aumento da dívida pública e redução do emprego. As pessoas se perguntam o que será do Rio quando a massa de turistas for embora. E quando o gigantesco aparato de segurança se desmobilizar?
– Se perguntavam se o Brasil estaria preparado para a Olimpíada, dizia que sim.
O nosso problema nunca foi o grande evento. O nosso problema é o cotidiano. E 2017 será o ano de refluxo de todo esse aparato. Se fala em ressaca porque, em vez de legado, poderemos ter a herança das dívidas – avalia Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública.
O economista Gilberto Braga não descarta os efeitos nefastos, mas pondera que a prefeitura não sofreu a crise tanto quanto o Estado porque conta com fortes receitas dos setores de serviços, além das movimentações financeiras dos próprios preparativos olímpicos. O Estado, dependente do petróleo, naufragou.
Em defesa do legado, o prefeito Eduardo Paes tem repetido que 57% do orçamento dos Jogos Olímpicos foi bancado por investimentos privados. E destaca que as despesas com as estruturas esportivas, como o Parque Olímpico, foram reduzidas de US$ 6,4 bilhões, no lançamento da matriz de responsabilidades, para US$ 4,1 bilhões.
– É o único caso de Olimpíada recente em que se reduziu o custo – argumentou Paes em recente evento.
O Rio terá de conviver com mágoas e cicatrizes. Nem todos saem contentes.
– Não me trouxe legado, só transtornos e problemas – desabafa Márcio Henrique de Jesus Moza, que deixou a Vila Autódromo.
Medalhista olímpico do judô brasileiro e diretor-presidente do Instituto Reação, Flávio Canto é otimista:
– A área urbanística tem um legado muito preciso, fácil de ver. E poderemos ter um legado intangível muito importante, neste contexto de baixa autoestima, porque acredito que teremos o melhor resultado olímpico da história do Brasil. A Paraolimpíada será uma revolução para o olhar da diversidade. Teremos grande número de novos e bons exemplos brasileiros. Isso tem impacto nas novas gerações.
Independentemente dos pontos de vista, as respostas tendem a vir somente no amanhã. Angústias e incertezas são sintetizadas pelo deputado Miro Teixeira (Rede-RJ):
– O grande problema é aquele que aflige cada pessoa. Para quem está com dificuldade na linha de ônibus, é o transporte. Para quem não consegue acessar o hospital, é a saúde. A questão do medo é generalizada. E é tão real que você vê o aparato que está sendo mobilizado. E resta a pergunta que todos fazem: e depois?
Outras melhorias na cidade
Porto Maravilha - É o principal projeto de revitalização da área central do Rio, integrada à região portuária. Envolveu a demolição do Elevado da Perimetral, um gigante cinzento de concreto de 4,7 mil metros de comprimento na região central da cidade. Os veículos que trafegavam pelo antigo viaduto agora têm como alternativa vias subterrâneas. No porto, há espaço de lazer, ciclovias, áreas verdes e dois museus. Também há planejamentos de habitação, inclusive de interesse social. A obra é elogiada até por críticos da prefeitura.
Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) - A rede de 28 quilômetros de VLT está em funcionamento, atendendo ao centro e à zona portuária da cidade. São vagões silenciosos que andam na superfície, sem separação dos espaços públicos por muros. Uma das linhas, por exemplo, transporta passageiros até a movimentada Cinelândia.
BRT da Barra da Tijuca - É o sistema de corredores exclusivos para o tráfego rápido de passageiros em ônibus. Atenderá a Barra da Tijuca e a zona oeste do Rio. Para chegar ao Parque Olímpico, será necessário descer na estação Jardim Oceânico, da Linha 4 do metrô, tomar o BRT e seguir por mais alguns metros.