Um vídeo publicado na manhã desta quinta-feira mostra o repórter Matheus Chaparini, do jornal Já, identificando-se como jornalista para a polícia durante a ocupação de estudantes no prédio da Secretaria Estadual da Fazenda, no centro de Porto Alegre, na manhã de quarta-feira. As imagens e o áudio contradizem nota divulgada pela Secretaria Estadual da Segurança para explicar a prisão do profissional durante o ato.
Na nota, o governo afirma que o repórter foi preso porque estava "agindo como militante" e que "só se identificou como jornalista quando já estava consumada a prisão pelo ato de invasão". De acordo com o documento, "a prisão se deu em virtude do ato individual de invasão, do qual ele foi parte ativa, e não do exercício da atividade profissional de jornalista".
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O vídeo, feito pelo próprio Chaparini, indica que ele estava documentando a ação da Brigada Militar contra os estudantes, que dirigiu perguntas aos policiais e que se identificou mais de uma vez como jornalista.
Nas imagens, vê-se os policiais retirarem os manifestantes à força, direcionando jatos de spray de pimenta diretamente no rosto de estudantes. Em certo momento, quando Chaparini tenta se mover e acompanhar a retirada dos alunos até a rua, um capitão identificado como Trajano coloca a mão diante da câmera e o impede de prosseguir.
Jornalista de 27 anos, formado em 2013 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Chaparini passou por veículos como Rádio Pampa, Tabaré, Rádio da Universidade e TVE. No Já, trabalha há mais de um ano. Na madrugada de ontem, depois de ser liberado do Presídio Central, começou a redigir um relato sobre a experiência. Às 9h, estava de volta à redação do jornal. Em entrevista a Zero Hora (confira abaixo), ele contestou praticamente toda a versão apresentada pelas autoridades, incluindo a de que teria se negado a falar na Delegacia de Polícia.
Zero Hora solicitou entrevista sobre o assunto com um representante da Secretaria Estadual da Segurança Pública, mas o pedido ainda não foi atendido.
Leia a reportagem do Jornal Já que apresenta o vídeo com as imagens gravadas pelo jornalista Matheus Chaparini
Leia, abaixo, trechos da entrevista com Chaparini.
Em que horário tu chegaste à Secretaria da Fazenda?
Devia ser em torno de 8h30min, 9h. Fui a uma coletiva com alunos da escola Paula Soares, que não aconteceu. Daí vi no Facebook que estava acontecendo a ocupação e desci lá.
Como é que foi o momento em que a Brigada Militar chegou em ti?
Eu estava lá dentro. Os estudantes estavam todos sentados no saguão, de mãos dadas, para tentar não ser arrastados. Eu estava ali perto, de pé, anotando coisas no bloquinho e tirando fotos. Fiz algumas perguntas para o capitão e disse que eu era jornalista. Tinha eu e um cineasta de São Paulo. A gente combinou de esperar sair o último estudante e fechar a pauta na rua. E daí eles disseram: "Vocês vão presos junto". Eu disse: "Sou jornalista". Ele disse: "Lá embaixo a gente conversa. Para mim, tu está igual aos outros".
Nessa hora já havia ocorrido o confronto, o uso de spray de pimenta?
Já tinha. Acompanhei ali essa parte, o spray de pimenta, de arrastar os piás um por um. Quando acabaram de tirar o último estudante, saí atrás, pensando: vamos acompanhar a descida e continuar a matéria na rua. E aí foi: "Tão junto, vão presos junto".
Antes desse momento, tu já havias te identificado?
Para aquele capitão, eu não tenho certeza. Mas durante eu tentei fazer umas perguntas, me identifiquei e eu digo que sou jornalista. Está no vídeo. Ele diz que não interessa.
Além do bloco e da câmera, mais alguma coisa te identificava como jornalista?
Eu estava com os meus crachás, para quando me pedissem identificação. Quando eu entrei lá, era uma ocupação, então os estudantes não me conheciam e pediam para eu me identificar. Eu dizia: "Claro, Matheus, repórter do Já, está aqui o meu crachá". Eu tinha inclusive alguns impressos do nosso jornal de bairro, o Já Bom Fim, e distribuí lá. Acho que não escondi minha identidade, digamos assim.
Além disso, antes de ser preso, tu chegaste a te identificar para a Brigada Militar como repórter?
Isso. E daí ele falou que era para eu me identificar na rua. Na rua, tentei novamente.
Na rua, foi outro PM que te deu voz de prisão?
Não. Foi o mesmo. Fui preso como militante. Dali os 42, 43 fomos levados para o Deca em dois camburões da Brigada, estilo micro-ônibus. De lá, os maiores foram para a 3ª DPPA, no Navegantes. Depois fomos ao Palácio de Polícia para fazer o corpo de delito e voltamos para o Navegantes. Para o presídio, saímos algemados em um camburão da Polícia Civil. Fiquei sem relógio, mas imagino que tenha chegado entre 19h e 20h no Central. Fui preso às 12h e fui solto às 2h.
Tu foste interrogado?
Pois é, a delegada falou que eu me recusei a falar. Mas não fui interrogado.
Isso está na nota da Secretaria de Segurança. Eles também dizem que tu agiste como integrante do grupo militante.
Pois é. O que é agir como militante? Enquanto eles faziam cartazes, eu tirava fotos. Enquanto eles sentavam no chão, eu tirava fotos. A pauta era a ocupação da Secretaria da Fazenda. Fui lá na ocupação. Não ia ficar a 40 metros do prédio para fazer a matéria. Peguei e entrei. Tinha uma porta aberta. Não forcei nada, não pulei um muro, ninguém me botou para dentro.
A nota do governo também sustenta que tu só te identificaste depois da prisão.
Não. Até porque o comandante do 9º BPM, Marcus Vinícius de Oliveira, deu uma pequena coletiva do lado de fora, logo que a Brigada chegou, e nessa pequena coletiva eu me identifiquei e fiz perguntas para ele. Ele conhece meu rosto. Já o entrevistei várias vezes. Isso antes de eu entrar no prédio.
A nota afirma que na DP tu terias te negado a falar.
Isso não aconteceu. Eles não tomaram depoimento, mas a delegada que estava lá fez uma listinha de perguntas bem básica: nome, idade, religião, umas coisas assim, e perguntou profissão. Eu disse: "A minha profissão é aquela que eu estava exercendo lá dentro. Sou jornalista, sou repórter, estava cobrindo". Então está dito para dois da Brigada, está dito para a Polícia Civil e está dito para o chefe de segurança da Casa. No item 4 da nota diz que os profissionais de imprensa tiveram garantido o direito de atividade profissional. Eu fui preso. Eu acho que isso não é garantir o direito de atividade profissional.
Como foi no presídio?
Fiquei numa sala que acho que eles chamam de jumbo. Éramos 10 maiores de idade presos, três mulheres e sete homens. Na nossa cela, de três por quatro, éramos nós sete e mais dois que já estavam lá. Esse dois não tinham nada a ver com a história, eram "duque", pelo que disseram lá, estupro. Até na cela do estuprador a gente ficou.
A experiência foi assustadora?
Eu nunca tinha pisado no Presídio Central. Só tinha entrado em cadeia para fazer matéria, não por fazer matéria. É triste. Quando tu sais de casa para trabalhar, tu não achas que vais estar na cadeia às 2h, por causa de uma pauta, uma pauta simples. E as acusações que os caras me fazem! Tem corrupção de menor. Tem associação criminosa, mas eu não fiz uma quadrilha. Tem dano qualificado ao patrimônio, e não quebrei nada lá dentro. Não sou mais um homem livre, porque estou em liberdade provisória, respondendo por quatro crimes que não existem. E agora eu não consigo mais fazer entrevista, só sou entrevistado. Quero voltar para o outro lado do gravador.