O abuso sexual contra crianças e adolescentes é muito mais comum do que se imagina e o trauma que este tipo de violência provoca pode ser devastador se não for tratado, segundo a avaliação de especialistas.
A rede de atendimento que envolve polícia, Ministério Público, Conselho Tutelar e serviços de saúde e assistência social precisa estar conectada ao ponto de identificar o autor de um crime que normalmente é velado, interromper a violência, proteger a vítima e proporcionar assistência.
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Família vive calvário ao descobrir abuso sexual e procurar rede de atendimento
De acordo com levantamento feito pela Delegacia de Polícia da Criança e do Adolescente (Deca), Porto Alegre registrou 420 casos de violência sexual em 2015. Até 11 de maio deste ano, são 148 ocorrências. Significa que no ano passado, a polícia registrou 1,15 casos por dia e em 2016, os registros continuam semelhantes - 1,12, o que equivale a uma média de um caso por dia.
Em contrapartida à demanda, existe uma estrutura deficiente, carente de recursos e preparo para lidar com um crime tão delicado. No mundo ideal, todos os profissionais da saúde, da educação, da segurança pública e do judiciário deveriam estar preparados para atender essas vítimas. Toda a sociedade deveria entender que ela não desejou ser abusada. No mundo ideal, a violência sequer ocorreria.
Na vida real, não é bem assim que funciona. Profissionais ouvidos pelo Diário Gaúcho dizem que a rede de atendimento se esforça para funcionar, mas ainda é falha. Se o número de casos registrados refletisse a realidade, a demanda seria ainda mais assustadora, revelam os especialistas.
– Sem dúvida existe uma cifra oculta, de pessoas que não denunciam por vergonha, medo ou até desconhecimento – destaca a delegada da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, Andrea Magno.
Levando em consideração que apenas um terço dos casos atendidos pelo Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil (Crai) é de Porto Alegre, fica evidente que a demanda é alta não só na Capital, mas em todo o Estado, inclusive em cidades do Interior.
– A violência cresce a passos largos. Existem várias situações que colocam as crianças em necessidade de acompanhamento. Então, é claro que não estamos funcionando bem, precisaríamos de mais estrutura e talvez um pouco menos de demanda – avalia a coordenador do Crai, Eliane Soares.
Pouca estrutura para muita demanda
O Crai, que funciona dentro do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, é a principal porta de entrada para crianças e adolescentes vítimas de qualquer tipo de violência sexual. O centro dispõe de uma equipe de psicólogos, assistentes sociais, médicos e peritos especialistas na área.
O serviço produz laudos físicos e psíquicos, além de providenciar os encaminhamentos para os tratamentos de saúde e acompanhamento social das famílias.
Referência neste tipo de atendimento há 15 anos, o serviço é o único em todo o Estado. Vítimas do Interior precisam se deslocar até a Capital para fazer a avaliação psicológica. Segundo a coordenadora, boa parte das famílias é trazida pelos Conselhos Tutelares.
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Reportagem acompanhou família que descobriu abuso e procurou rede de atendimento em Porto Alegre.
– Não é papel do conselho fazer a condução para outra cidade – avalia o coordenador-geral do Conselho Tutelar de Porto Alegre, Marcelo Bernardi.
O conselheiro ressalta a precariedade na estrutura que oferece tratamento às vítimas depois que o abuso é revelado. Como a demanda é maior do que a oferta, os agendamentos são demorados.
– Hoje as coisas estão invertidas, a população está acessando o Conselho em primeiro lugar porque vai no serviço social e não encontra atendimento.
É que após a avaliação no Crai, a vítima pode receber atendimento com a Equipe Especializada em Saúde da Criança e Adolescente (Eesca) e a família o acompanhamento social no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
A continuidade do atendimento depende da necessidade de cada caso. O Conselho Tutelar e o Ministério Público são responsáveis por fiscalizar a prestação dos serviços e se as famílias estão cumprindo com as medidas. De acordo com a promotora Denise Villela, da 10ª promotoria de Justiça, uma das dificuldades é fazer com que a família continue o tratamento.
– Em muitos casos, passamos a maior parte do tempo tentando localizar a família que se evade porque não quer ser encontrada.
Em situações extremas de negligência, a Justiça pode determinar o afastamento do agressor ou o acolhimento da criança por outro familiar ou até mesmo por um abrigo.
Contraponto
De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, embora o Crai seja a referência do Estado, existem outros 15 hospitais que também são referência em saúde para vítimas de violência sexual. Sobre a logística de transporte das vítimas de outras cidades até o Crai, a secretaria informou que a responsabilidade é do município.
"Justiça também precisa se adequar"
Para o desembargador da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça José Antônio Daltoé Cezar que atuou durante 20 anos na Vara da Infância e Juventude, toda a rede, incluindo o Poder Judiciário, precisa se adequar para evitar que a vítima repita o depoimento.
Um projeto de lei ainda fora do cardápio de votações na Câmara dos Deputados, prevê a organização da rede de tal forma que diminua a revitimização.
– É preciso evitar que ela fale tantas vezes até para a produção antecipada de prova. Não só no depoimento judicial, mas todos (os profissionais envolvidos) devem se capacitar. A criança e o adolescente não podem ser ouvidos da forma tradicional, como o adulto.
A corregedoria do Poder Judiciário está promovendo a captação de recursos das Varas de Execuções Criminais para ampliar a estrutura do Crai e incluir o atendimento de mulheres vítimas no mesmo espaço do Hospital Presidente Vargas, na Capital. O investimento está estimado em cerca de R$ 2 milhões.
Diário Gaúcho acompanhou o calvário de uma família desde a descoberta do abuso sexual até a busca pela rede de atendimento. Clique aqui e confira.