O gaúcho é uma criatura calejada pela violência do dia a dia e já não se impressiona com tanta facilidade diante da audácia crescente dos criminosos. Nos últimos dias, três roubos não muito elaborados, mas de imenso significado simbólico, conseguiram causar espanto e consternação na sociedade rio-grandense.
Em São Jerônimo, bandidos invadiram uma escola municipal e levaram a merenda das crianças. Em Porto Alegre, foi um colégio estadual que serviu de alvo, com um saldo de 110 netbooks subtraídos. A Capital também serviu de cenário para o terceiro caso, o furto de 5 mil peças de roupa arrecadadas pela comunidade judaica para distribuição entre a população mais necessitada.
Para as pessoas revoltadas, foi como se os bandidos houvessem ultrapassado os limites do aceitável, desrespeitando zonas sagradas: o papel social da escola pública e a solidariedade com os mais pobres. Por mais chocante que a insensibilidade dos criminosos possa parecer, também é possível enxergar nos três episódios uma versão empalidecida do noticiário cotidiano brasileiro. Afinal, não é exatamente a mesma apropriação dos bens públicos e a mesma indiferença com as necessidades dos desvalidos o que está por trás dos escândalos nacionais de corrupção?
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Se em São Jerônimo os ladrões esvaziaram a despensa da escola, em São Paulo o governo estadual anda às voltas com um escândalo nos contratos para a aquisição de merenda escolar. Enquanto no colégio da Capital uma centena de computadores foi roubada, compras bilionárias de equipamentos para escolas, realizadas pelo Ministério da Educação, estão sob investigação, por suspeita de superfaturamento.
E os agasalhos furtados na quinta-feira em Porto Alegre são de quantidade modesta, se comparados aos desvios de donativos que deveriam ter beneficiado vítimas de desastres em Santa Catarina, em Alagoas, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul (por aqui, o desvio envolveu milhares de telhas da Defesa Civil, destinadas a famílias atingidas por temporais).
– O criminoso é uma pessoa que não tem compromisso com a coletividade. É alguém que, em determinado momento da vida, partiu para ser contra a sociedade. Para ele, uma escola é um alvo como qualquer outro. Mas há um exemplo que vem de cima. O clima geral que vive uma sociedade tem impacto no comportamento das pessoas. Não se sabe como algo passa das esferas mais altas da hierarquia para baixo, mas se sabe que isso acontece – diz o sociólogo Juan Mario Fandino, pesquisador aposentado de criminologia da UFRGS.
O sociólogo cita como exemplo dados segundo os quais aumentam de forma expressiva os crimes passionais nas situações em que um país está em guerra:
– Quando o conjunto fraqueja, perdem-se os controles, o que exacerba o comportamento criminal. Abre-se uma porta para pessoas não comprometidas com a criminalidade, até mesmo em situações como a evasão de impostos, em que a pessoa acha que não está cometendo um crime, mas está cometendo um crime.
O psicanalista Robson Pereira, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, entende os episódios dos últimos dias como reflexo de uma cultura que vê no bem público algo que pode ser convertido em propriedade particular. Segundo ele, essa é uma cultura presente em todos os estratos sociais. Pereira também associa os casos registrados no Estado com os episódios de corrupção de grande repercussão.
– Os escândalos nacionais mostram em um nível macro essa mesma cultura que estamos vendo agora nessa situação municipal, digamos assim. Não deixa de ter a mesma lógica, que é a pessoa achar que pode se apropriar do bem público. Nós lidamos com uma enorme dificuldade para diferenciar o que é nosso, da ordem privada, e o que é da coisa pública. Não diria que se trata de seguir um exemplo que vem de cima. Diria que existe uma falta de limites, relacionada à questão da impunidade – observa o psicanalista.
"Sinto uma ausência de limites"
O antropólogo Roberto DaMatta afirma enxergar relação entre o que acontece em altas esferas, como as de Brasília, e episódios mais simples, como furtos de donativos e merenda de escola. Confira, a seguir, trechos da entrevista.
Que interpretação é possível fazer sobre os três episódios ocorridos no Estado?Estamos vivendo um momento de assombro. Na primeira página do jornal, aparecem esses fatos degradantes, que são roubar escolas ou quem está fazendo caridade, ao lado da fotografia dos ladrões que estão na Câmara Federal. Fica complicado.
O senhor vê relação entre o que acontece nas altas esferas, como o Congresso, e episódios mais simples, como os registrados no Rio Grande do Sul?
Sem dúvida, porque elas estão no mesmo caldo cultural. É uma ausência de direção. Estamos vivendo um estado de anomia. Esse estado de anomia na política é óbvio. Estamos perdendo no Brasil o senso comum.
Como é que se dá a relação entre esses episódios de diferentes esferas?
Quem vive em sociedade vive numa rede. Quando falamos em moralidade, estamos falando de uma teia de relações. Se você mexer em um ponto dessa rede, afeta a rede inteira. Veja que no Brasil, hoje, estamos com dois presidentes da República. É brincadeira! O japonês da Polícia Federal é preso como contrabandista. Dá vontade de se suicidar!
Fazendo um paralelo, no caso do roubo dos computadores da escola parece haver o envolvimento de um policial.
Assistimos a uma desilusão com códigos importantes de convivência humana, sobretudo quando se trata de instituições críticas para a sociedade, como aconteceu em Porto Alegre. Você vai assaltar escola? Bandido, pra mim, assalta banco, joalheria, mas não escola. Sinto uma ausência de limites.
É razoável esperar que mesmo bandidos tenham algum parâmetro ético e poupem escolas ou donativos para necessitados?
O que se espera é que aconteça alguma coisa com esses bandidos. O que não pode acontecer é um mês depois esse mesmo bandido cometer um crime igual, que é o que a gente vê no jornal.