A espanhola Adela Cortina talvez não tenha percebido, mas realizou um feito quando esteve em Porto Alegre na última semana de maio. Convidada para palestrar na Faculdade de Economia da UFRGS, uma das filósofas mais influentes da atualidade conseguiu manter todos da plateia longe dos smartphones. Ao falar sobre moral e ética, seu campo de estudo, a pesquisadora nascida em Valência, em 1947, deu ao público – formado em sua maioria por jovens – a oportunidade de retomar um hábito alicerçado por Platão e Aristóteles, mas aparentemente perdido em tempos modernos: sentar e simplesmente ouvir.
Com sotaque carregado e voz firme, a filósofa, catedrática de Ética na Universidade de Valência, falou sobre temas bastante atuais, como corrupção, imigração e xenofobia, e comentou também sobre suas principais obras. A mais famosa delas, Ética Mínima, escrita na década de 1980 no contexto de uma Espanha dividida por projetos diferentes de Estado, trata justamente dos desafios e tentativas de encontrar pontos mínimos de diálogo – uma lição útil para o Brasil de hoje, marcado pela polarização e intolerância política.
Em conversa com ZH, Adela não se furtou a falar ainda sobre violação de leis, educação de valores, da onda migratória vivida pela Europa e da "aporofobia" – palavra que criou para designar o "ódio e desprezo pelos estrangeiros pobres".
Faz 30 anos que a senhora publicou o seu primeiro grande livro, chamado Ética Mínima, escrito no contexto de uma Espanha dividida por éticas incompatíveis. A dificuldade de se lidar com sociedades moralmente plurais, que hospedam projetos conflitantes, é comum também a democracias como o Brasil. Como construir uma ética mínima em sociedades moralmente divididas?
Na Espanha parecia que havia éticas incompatíveis, mas não era assim. Conviviam diferentes "éticas de máximos", ou seja, distintas propostas de vida feliz, como algumas de fundo religioso. No entanto, essas éticas compartilhavam em realidade uma "ética mínima", uma aspiração para realizar valores como a liberdade, uma maior igualdade, a solidariedade, o diálogo e o respeito. O livro tratava de extrair esses valores compartilhados à luz para que nós, os cidadãos, nos déssemos conta de quais eram os nossos valores e de que tínhamos que lutar por eles. Acredito que no Brasil pode acontecer algo muito parecido e que é preciso também que vocês descubram esses valores compartilhados.
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Na sua Ética de la razón cordial (livro de 2007), a senhora defende a importância de promover a autonomia das pessoas. Como fazer isso no cotidiano?
Descobrindo o que nos escraviza e nos liberando do que for. Para conseguir isso é preciso estabelecer redes de solidariedade, porque a autonomia se conquista em solidariedade com os outros.
É uma tarefa dos governos? Será que governos devem ser preocupar em criar cidadãos? Isso não seria o fim dos Estados liberais?
Educar na autonomia é justamente a tarefa dos Estados liberais, porque consiste justamente em cultivar a capacidade das pessoas de serem senhores ou senhoras de seus próprios destinos.
A senhora afirma em Ética de la razón cordial que "ser seu próprio senhor no político quando se é vassalo no econômico é na realidade impossível". Como realizar então a autonomia política em regimes capitalistas que convivem com altos níveis de pobreza e desigualdade?
Por um lado investindo na educação das pessoas, e por outro trabalhando por uma economia ética, empenhada na melhoria da vida das pessoas e na redução das desigualdades. Neste ponto, a ética das empresas, materializada em sua Responsabilidade Social Corporativa, junto com a tarefa dos governos, é central.
Deve uma ética cívica ser objeto comum de uma nação ou deve ser ela transnacional, ultrapassando as fronteiras dos países?
Ela já está sendo transnacional. Em um mundo global, nós que vivemos em países diferentes vamos contagiando-nos em nossos valores, quer queiramos ou não. Por isso é fundamental contagiar em valores positivos como a justiça, a liberdade e a solidariedade, e não os contrários a esses.
É possível falar em um pilar ético europeu, assim como falamos em uma unidade monetária entre os países ou há uma incongruência natural?
A União Europeia se deu uma Carta de Direitos, na qual se incluem os seus valores mais apreciados. Esse deveria ser na realidade o coração da Europa: a Europa social, a que defende os direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais.
Segundo seu entendimento, existe um abismo entre "moral pensada" das pessoas (o que elas dizem que é importante) e "moral vivida" (como elas alocam seu tempo). Por que os atos das pessoas não estão à altura de suas declarações? Por que as pessoas não praticam o que dizem?
Porque a ideologia do individualismo, que se prega em nossas sociedades, ajuda a cultivar a dimensão mais egoísta das pessoas, quando, na realidade, o que nos faz mais felizes é viver as relações com os outros na sua plenitude.
O que podemos fazer para não perpetuarmos nas gerações futuras esse abismo entre a moral pensada e a moral praticada?
Precisamos estar mais atentos para o fato de que uma declaração é também um compromisso. Declarar é comprometer-se. Como diminuir essa distância é uma pergunta que me faço e acho que todos devemos fazer a nós mesmos. Creio que uma boa maneira de começar é implantar na escola uma disciplina de ética. E também em todas as carreiras. Na faculdade de economia, por exemplo, deveria haver cadeiras de ética. Todo mundo se pergunta: filosofia para quê? Mas ninguém se pergunta: economia para quê? Qual deve ser a meta da atividade econômica? Tem um professor, amigo meu, que costuma dizer: os alunos não entendem que um tema é importante para o exercício da profissão se não estiver no currículo.
No Brasil, ficou famosa a expressão "jeitinho brasileiro", que sintetiza a fórmula mágica e criativa dos brasileiros para resolver os problemas cotidianos, muitas vezes burlando regras. Em que medida isso revela uma falta de conduta ética intrínseca do brasileiro ou um reflexo de atraso, uma forma de sobrevivência em um país tão marcado pelas desigualdades?
No Brasil, assim como na Espanha, burlar as regras é habitual, mas isso se deve a que as pessoas melhor posicionadas na sociedade violam essas regras e o resto da população pensa no porquê deveria cumprir essas regras se as pessoas poderosas não as cumprem. Não são as pessoas mais pobres que violam as regras, senão aqueles que estão melhor posicionados na sociedade.
O debate socioeconômico oscila entre defesa da austeridade fiscal e necessidade de crescimento econômico, deixando de lado um fato considerado chave que é a distribuição de renda. É ético socialmente permitir que alguns cidadãos acumulem fortunas bilionárias enquanto parte da população sofre com a indigência?
Não, isso é radicalmente injusto. Um sistema fiscal rigoroso é uma exigência da justiça, que deve ser implementado.
São eticamente aceitáveis leis que permitam enriquecimento abusivo?
Claro que não. É necessário marcar os limites de modo legal.
A quem cabe este papel de educador de valores? Ao Estado, à família, à mídia, à religião?
A sociedade no seu conjunto é educadora. Devem educar os pais e as escolas, as Universidades, as comunidades religiosas e todos os demais meios de educação. Mas também personagens relevantes da vida política dos países devem tentar dar o exemplo.
Qual sua opinião sobre educação religiosa nas escolas?
Nas escolas públicas, a educação religiosa deveria ser uma opção oferecida por razões distintas. Conhecer o fenômeno religioso é indispensável para compreender tanto nossas culturas como a muitos de nossos concidadãos, mas além disso as religiões aportam valores muito importantes para a sociedade, que não devem ser ignorados.
Acredita, como Sócrates, que o "mal" é reflexo da falta de conhecimento do "bem"?
Não, não acredito. Pode acontecer em algumas ocasiões, mas a conduta das pessoas tem a ver em geral com o querer e com os sentimentos, não só com o saber intelectual.
O Brasil viveu no último ano um dos piores escândalos de corrupção da sua história, com diversos empresários e partidos políticos envolvidos em um esquema de desvio de verbas públicas. Em que medida esse episódio pode mudar a conduta ética no país?
Não gostaria de dar opiniões sobre a vida brasileira, mas me parece que os escândalos de corrupção atualmente descobertos não são os maiores da história do Brasil. O que acontece é que nossas democracias amadurecem e se conhecem cada vez mais os casos de corrupção, de um lado e de outro. Este é um bom momento para aumentar as medidas de transparência.
O direito, as leis, os juízes e os tribunais são suficientes para acabar com a corrupção?
Não. São necessários mas não suficientes. Se nós, os cidadãos e os políticos, não estivermos convencidos de que o objetivo de política é o bem comum, para cada lei feita haverá uma trapaça, ou como se diz em espanhol, "hecha la ley, hecha la trampa".
Sem mudanças nas instituições e no sistema político estaremos fadados a cometer os mesmos erros?
Sim, claro que sim. Mas também é necessário potencializar o sistema educativo, educar em uma cidadania madura.
Em artigo publicado no El País este ano, a senhora cita camaleões e dinossauros para se referir à flexibilidade necessária na vida pública, mas também ao pernicioso "vazio de convicções". Em que medida a corrupção reflete essa falta de convicção dos partidos e dos parlamentares?
Acredito que o maior perigo são os grupos corruptos, mais do que as pessoas corruptas em isolamento. Quando um político ou um empresário se encontra enrolado em uma trama de corrupção, é muito difícil não seguir o jogo. É urgente assegurar instituições que sejam justas.
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A Europa enfrenta uma questão envolvendo a enorme quantidade de refugiados que chegam ao continente em busca de uma condição mínima de sobrevivência. Países têm adotado políticas bem diferentes na recepção dessas multidões: uns, como a Finlândia, mais receptivos, outros menos, como o caso da Hungria, que não parece ter proteção à vida como prioridade. Em que medida isso reflete valores éticos diferentes em relação ao próximo?
A crise dos refugiados e dos imigrantes está colocando em questão a própria concepção da união da Europa. Um de nossos valores mais apreciados era a hospitalidade, justamente o que estamos negando às pessoas mais fragilizadas. Estamos claramente abaixo de um mínimo de justiça. É urgente mudar a atitude.
Como promover o diálogo entre os diferentes?
É preciso entender que ninguém tem uma verdade absoluta. Ninguém tem todas as respostas. Para definir o que é o justo, temos que conversar com o outro. No terreno da moral, não existe "A verdade". O que existe é o justo e o injusto, e ninguém tem poder de determinar o que é justo se não buscar conjuntamente com outros. Por isso nossas sociedades pluralistas, com distintas éticas de máximos, distintas ofertas de vida boa, o núcleo do mínimo compartilhado seria a justiça. Os seres humanos são seres em relação, estamos unidos aos outros, querendo ou não.
No seu trabalho mais recente sobre neuroética e micropolítica, a senhora sugere um papel para a neurociência na educação moral. Qual seria?
Precisamos ter consciência de que o nosso cérebro nos predispõe para condutas xenófobas e nepotistas, mas também para condutas altruístas e cooperativas. O que devemos decidir com liberdade é quais dessas condutas queremos cultivar dentro de nosso sistema educacional. Essa é a nossa responsabilidade.
A senhora afirma que o cérebro tem uma pré-disposição à xenofobia.
Quando o cérebro humano foi se conformando durante todos os anos de evolução, os seres humanos viviam em grupos pequenos, de no máximo 130 pessoas. Grupo muito fechados. E nosso cérebro se acostumou a viver com pessoas do mesmo grupo e a rejeitar os estrangeiros. Ao longo dos tempos, os grupos se juntam entre eles para se proteger e repudiam os demais. Nosso cérebro é xenófobo. Obedece uma tendência de unir-se com pessoas do nosso grupo e repudiar os estranhos.
Mas há países que vivem do turismo, de receber estrangeiros, não?
Nossos cérebros são xenófobos, mas sobretudo são aporófobos. É uma palavra criada por mim quando cheguei à conclusão de que mais do que xenofobia, aversão ao estrangeiro, temos uma aversão ao estrangeiro pobre. Temos ódio e desprezo pelo estrangeiro pobre. Não nos incomodam os estrangeiros que chegam com um monte de dólares. "Que venham, estamos encantados!" Não nos incomodam os árabes que chegam cheio de petrodólares. Quem nos incomoda? Os que chegam sem dinheiro. Os que não têm nada para dar em troca.
Como surgiu a expressão aporofobia?
Aprendi que, em grego, aquele que é pobre se chama "aporos", e então construí esta palavra: aporofobia. Em 2000, publiquei um artigo no jornal El País dizendo isso: como a Real Academia de Língua Espanhola cria tantas palavras, criei uma palavra que para mim é uma necessidade. Expressa uma realidade que existe. E enquanto não colocamos nomes nos fenômenos, seguimos praticando sem que nos demos conta deles.
Isso tem piorado de lá para cá?
Um amigo meu me disse um tempo atrás: a aporofobia está ficando muito séria. E efetivamente está. Os delitos de ódio estão se proliferando contra mendigos, sem-teto. O ódio ao pobre é algo muito mais estendido que o ódio ao estrangeiro. Porque é o pobre que parece não ter nada a oferecer em troca. O sentimento de simpatia é destinado à família, aos amigos, àqueles que parecem ter algo para oferecer, mas deixa de fora aqueles que parecem não ter nada. Isso aumenta o sentimento de exclusão e isso é bastante problemático.