Seguindo uma diretriz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, uma emenda constitucional publicada em 14 de janeiro de 2000 reconheceu a alimentação e a habitação como direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Passados mais de 15 anos, no entanto, a implementação dessa determinação essencial para uma vida digna ainda se mostra como um grande e inadiável desafio. Uma amostra disso é a situação enfrentada pelas famílias que ocuparam um terreno particular de cerca de 15 hectares no bairro Parque Pinheiro Machado, zona oeste de Santa Maria.
Em Camobi, ocupação reúne 50 pessoas
Entre as cerca de 500 famílias que ocupam o espaço, estão manifestantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia e pessoas que pagaram por terrenos anos atrás e ainda não são reconhecidos como seus donos. A grande maioria dos ocupantes, no entanto, é formada por moradores que ainda não foram contemplados no programa Minha Casa, Minha Vida.
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Conforme a manicure Deise Camargo, 23 anos, que está no local desde o primeiro dia de ocupação, há pouco mais de um mês, mais de 2,5 mil pessoas estão no terreno. E já existe uma lista de espera com mais de 200 famílias que desejam um pedaço de terra. A jovem, que participou de uma manifestação na terça-feira, quando cerca de 50 representantes da famílias foram ao Fórum, ao gabinete do prefeito e à Câmara de Vereadores, na tentativa de sensibilizar as autoridades para a situação, afirma que todos estão lá pelo mesmo motivo: não têm mais condições de pagar aluguel.
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– Os donos do terreno argumentam que ele era produtivo, mas a gente sabe que estava virado em um depósito de lixo. Existe um projeto de um loteamento que venceu em 2003 e, até agora, nada foi feito. Não queremos nada de graça, queremos comprar o terreno, dentro das nossas condições, das nossas possibilidades. Estamos apenas lutando por moradia. Nosso maior medo é não ter para onde ir. Se pagarmos aluguel, não temos como comer – comenta a jovem, que está desempregada há seis meses.
Casebres ainda tomam forma
Mesmo que já tenha se passado mais de um mês desde o início da ocupação, o barulho de serrotes e o som característico de marteladas avisam: alguns barracos ainda estão tomando forma. E em uma das milhares de casas improvisadas, em sua esmagadora maioria com espaço de dois metros quadrados cobertos por lonas e construídas com sobras de madeiras, está depositada a esperança de Eroni Simão, 62 anos. Dependendo dos R$ 118 mensais que recebe do Bolsa Família, a idosa não conseguiu mais pagar o aluguel das duas peças pequenas, onde morava com a filha e o neto recém-nascido.
Famílias terão que desocupar área de 15 hectares em Santa Maria
A proprietária do imóvel pediu que ela achasse outro lugar. Sem ter para onde ir, viu, na ocupação, uma saída. Com a ajuda de vizinhos e com uma lona emprestada, montou seu barraco.
Manifestantes terão mais tempo para deixar terreno ocupado
– A gente está lutando por um cantinho para morar. Sou idosa, estou doente e não tenho mais condições de pagar aluguel – exclama a idosa, que ainda precisa lidar com diversos problemas de saúde como diabetes, pressão alta, um glaucoma no olho direito e depressão.
Mesmo que não haja um líder estabelecido, algumas lideranças acabaram surgindo em meio aos ocupantes. Comissões foram formadas para organizar o local, cadastrar as famílias que ainda desejam um espaço no terreno e cuidar da alimentação de quem tem menos condições. Cléber Cardoso, 31 anos, é um dos responsáveis pelo cozinha comunitária que foi montada em uma das casas. De acordo com o ocupante, cerca de 200 pessoas são beneficiadas diariamente pela iniciativa. O cardápio é criado de acordo com os alimentos que recebem de doações de mercados e de moradores do Loteamento Cipriano da Rocha, localizado ao lado do terreno. Também é na casa dos vizinhos que eles buscam a água usada para cozinhar e para a higiene pessoal.
– A gente serve café da manhã, almoço, café da tarde e janta. Além das doações, contamos com a contribuição dos ocupantes, que varia entre R$ 1 e R$ 2, para comprar os alimentos – conta Cardoso.
Pagaram mas não receberam as escrituras
O terreno do Parque Pinheiro Machado pertence a uma família que tinha contrato de compra e venda com uma empresa de Santa Maria. No local, seria feito um loteamento. Depois que o proprietário da empresa morreu, não foi dado andamento ao projeto e foi travada uma batalha judicial pela posse dos 15 hectares. O advogado da família, Wilson Cardoso de Souza, alega que o local não está inutilizado, já que aguarda um novo projeto de loteamento que está em andamento na prefeitura. O anterior, conforme os ocupantes, estaria parado desde 2003.
E entre as centenas de pessoas que aguardam o desfecho desse embaraço judicial, estão as famílias que alegam ter comprado 45 lotes e, até hoje, não terem recebido as escrituras do terreno. A ocupação reacendeu a esperança de quem já estava conformado com o prejuízo financeiro e moral sofrido ao longo dos anos.
Enquanto torrava uma porção de amendoins em um fogo de chão, um casal de jovens, que preferiu não ser identificado, contou que comprou o terreno de número 38, em 2008, por R$ 18 mil. À época, eles entraram em contato com um corretor de imóveis após lerem um anúncio sobre o tal Residencial Jardim. Após cerca de dois anos pagando parcelas mensais, diretamente no escritório do corretor, perceberam que havia algo errado. A dupla chegou a comprar material de construção, mas não conseguiu nem mesmo usar o espaço como depósito. Depois, foram informados de que a empresa havia falido, e o projeto não sairia do papel.
– Entramos em contato com o proprietário do terreno, mas ele afirmou que não reconhecia a compra e que não havia autorizado o loteamento – lamentou o jovem, enquanto mostrava o contrato de compra.
A reintegração de posse da área já foi determinada pela Justiça. A 4ª Vara Cível autoriza até o uso de força policial, caso os ocupantes não acatem a decisão.
– Nosso advogado entrou com recurso. Se a Justiça decidir que temos de sair, a intenção é sair e voltar. É preciso que a comunidade abra sua visão para a questão da moradia – argumenta Cleiton Oliveira Dorneles, 27, uma das lideranças da ocupação.
Ao final da história, a Justiça dirá quem deve ficar em posse do terreno. Por enquanto, fica o alerta e a certeza de que a habitação deve ser tratada com a atenção que a questão exige e merece.
– Se a gente não precisasse, não estaria dormindo embaixo de uma lona – diz dona Eroni.