Cidade do Cabo, África do Sul – Katlego Sebastian Mlambo, chef que cresceu em uma favela na periferia de Johanesburgo e trabalhou em algumas das cozinhas mais prestigiadas da África do Sul, disse que é fácil explicar o amor quase universal do país pelo braai, ou "grelha" em africâner, idioma que é uma mistura de holandês-malaio-zulu-xhosa-inglês usado ali desde 1652, quando os primeiros europeus chegaram da Holanda.
– Temos onze línguas oficiais e braai é a única palavra reconhecida em todas elas, diz ele.
Como muitos outros sul-africanos apaixonados por cozinha, ele afirma que embora a nação reúna muitas culturas distintas, o braai se sobrepõe a etnias, raças e classes sociais.
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– À noite, todo mundo pode se sentar junto e ficar olhando o fogo durante horas. Chamamos isso de TV africana, conta Mlambo, sem comentar que o clima e a paisagem espetaculares também não são nada mal.
Como "grill" ou "barbecue" nos EUA, braai pode ser substantivo, verbo ou adjetivo e ser usado mais ou menos das seguintes formas: – Vamos pôr esses bifes de alcatra no braai ou – Fala para a Sarah começar a braai os mielies (espiga de milho) ou mesmo, – Vai ter braai de costela de javali este fim de semana.
Pode ser realizado na praia ou no quintal, para quatro ou 40 pessoas, por qualquer motivo ou nenhum. Tradicionalmente realizado após uma caça ou abate, hoje em dia acontece porque o peixeiro local recebeu um lote de camarões gigantes de Moçambique ou porque os Springboks (como é chamada a seleção nacional de rúgbi, outra paixão nacional) estão jogando ou simplesmente porque é terça-feira.
Seja a principal atração uma perna de carneiro com pesto de romã e hortelã no fogo de chão de uma festa de casamento na região vinícola ou pescoço de cabrito assando nas brasas dentro de metade de um tambor de óleo em uma favela, a carne grelhada é a paixão criativa e um prato do dia a dia na África do Sul.
– O cheiro da fumaça está no sangue da gente. Mesmo quem mora na cidade e trabalha num escritório, à noite sempre quer fazer um braai, conta Jean Nel, um dos churrasqueiros mais famosos da África do Sul que cresceu em uma fazenda de criação de carneiro isolada.
A prática ganhou até uma data especial: o Dia do Braai, oficialmente chamado de Dia do Legado, comemorado em 24 de setembro.
Em 2005, quando começou a campanha que incentivava a comemoração do feriado com um churrasco, a noção de que um país ainda dividido pudesse se unificar à volta de uma paixão nacional parecia sem fundamento e, de certa forma, até ofensiva. O braai, porém, surgiu como um símbolo da tentativa de unificação sul-africana. De dez anos para cá, a carne se tornou mais acessível, os supermercados se expandiram e os programas de culinária viraram verdadeira febre, com opções como "O Verdadeiro Mestre do Braai" e "Siba's Table".
Um braai simples consiste em peito de frango e toasties, ou sanduíches grelhados de queijo, mas o "braai de verdade" é um ritual social do início ao fim.
Ele começa reunindo uma mistura de proteínas – para facilitar, os supermercados daqui oferecem os "pacotes braai" por quilo – e prossegue com o tempero das carnes e o acender do fogo. A conclusão é a retirada das iguarias da grelha, depois de muita discussão sobre o ponto ideal.
A entrada – Mlambo recomenda linguiça de porco – é necessária para "quebrar" a fome dos convidados e, como diz, – manter as mãos do pessoal longe da grelha. Os convidados não devem nunca mexer nas pinças do anfitrião, nem testar o ponto da carne, mas podem dar conselhos e opinião até cansar.
– A menos que a pessoa seja vegetariana radical, se você mora aqui, aprende a apreciar uma boa carne – e consequentemente sabe que um filé que não seja preparado entre o ponto e o malpassado é um sacrilégio, afirma Dani Pick, um dos donos da Butcher Shop & Grill, uma rede de restaurantes de braai refinados em Johanesburgo, Cidade do Cabo, Dubai e cinco outros endereços no Oriente Médio.
Embora a mulher seja responsável pela preparação das refeições diárias em todas as culturas daqui, o homem tende a ser o responsável pelo braai.
– Elas só podem entrar na cozinha para fazer uma saladinha; o trabalho todo é dos homens – mas é claro que as mulheres também são responsáveis por todos os acompanhamentos e entradas, além de dar de comer para as crianças, explica Camilla Comins, chef e autora do livro "Girls on Fire", livro sobre o braai em versão feminina.
A tradição e o braai continuam inseparáveis. Além do prazer básico que todo churrasco proporciona, ele é carregado da nostalgia em relação ao passado, à época pré-industrial em que os ancestrais passavam as noites ao redor da fogueira sob o céu claro da África do Sul.
O braai tem mais a ver com ritual que receita, mas alguns sabores são típicos locais. Carne de vaca e carneiro são o padrão, mas tem quem goste de destacar a biodiversidade regional com cortes de avestruz, bok (antílope) e gnu.
Em zulu, a expressão para braai é shisa nyama, que se traduz mais ou menos como "queimar carne". O termo foi adaptado pelos falantes de outras línguas africanas daqui.
– O shisa nyama estava aqui muito antes de o braai chegar, afirma Faith Nomonde Sikaya, chef em Langa, periferia da Cidade do Cabo, onde comanda um restaurante na casa que sua família mora desde 1948.
Foi nesse ano que as novas leis do apartheid e políticas de moradia entraram em vigor na África do Sul. Na Cidade do Cabo, os bairros racialmente diversificados, há muito tempo estabelecidos, foram demolidos e os moradores de cor, expulsos, forçados a ir para as favelas e dar espaço para as comunidades brancas.
Hoje, um lado da Montanha da Mesa, cartão postal local, é coberto de praias douradas, colinas floridas, mansões e cafés; a dez minutos de distância, porém, na extremidade mais remota, Cape Flats, empoeirada, se estica rumo ao interior por vários quilômetros, coberta por favelas e municípios satélites.
A maioria desses tem um açougue onde os clientes podem comprar carne para fazer o braai em casa ou grelhá-la ali mesmo, tinindo de quente, com gordura e a crosta crocante com gosto defumado. Antigamente, só os cortes mais baratos como pata da vaca, o pé de porco e os smilies (cabeça de carneiro aberta de cima embaixo) eram vendidos ali, onde o braai era assado sobre ripas de paletes e outros materiais de construção. Hoje, no Mzoli's, açougue em Gugulethu, há T-bones, além de vários tipos de linguiças frescas, bistecas e filés fininhos que são preparados rapidamente sobre oito churrasqueiras imensas dispostas na parte de trás.
Em seu restaurante, o Mzansi, Sikaya prepara pratos tradicionais servidos com o shisa nyama em toda a região meridional da África: umxhaxha (milho e abóbora cozidos com açúcar, sal e canela), umngqusho (milho, fava, cebola, batata e pimenta chili) e chakalaka, um refogado delicioso, mas meio esquisito que leva cebola, alho, gengibre, tomate, cenoura, pimentão, chili, curry e feijão de lata.
Nel, famoso por seu braai, escreveu um livro de receitas que virou best-seller em 2011. E ao entregar o manuscrito, estipulou apenas uma condição: o título, "Braai the Beloved Country" ("O Querido País na Grelha"), era inegociável.
– O livro fala de uma das coisas que os sul-africanos têm em comum. Não poderia ter outro título, mas minha editora quase caiu da cadeira, conta, com satisfação.
T-bone picante no braai
Rendimento: 4 a 8 porções
Tempo de preparo: 45 minutos, mais de uma a quatro horas de geladeira
4 colheres (sopa) de sal grosso
2 colheres (sopa) de açúcar refinado ou mascavo (opcional)
2 colheres (sopa) de sementes de coentro
1 colher (sopa) de pimenta-do-reino em grão
1 colher (sopa) de páprica ou 2 colheres (chá) de páprica com 1 colher (chá) de pimenta-caiena
1 colher (sopa) de alho em flocos ou em pó
1 colher (sopa) de cebola em pó
1 colher (sopa) de tomilho desidratado
4 a 6 filés T-bone com aproximadamente 4 cm de grossura
1. Prepare o tempero do braai: em um moedor ou pilão, moa todos os temperos e ervas até obter um pó bem fino.
2. Esfregue os filés com a mistura e leve à geladeira de uma a quatro horas. Deixe descansar a temperatura ambiente antes de prepará-los.
3. Aqueça a grelha até que esteja estalando de quente. Disponha os filés sobre ela e deixe mais ou menos dois minutos de cada lado ou até que fique meio cascudo por fora e ao ponto/malpassado por dentro (de 49 a 52°C). Deixe descansar dez minutos e fatie no sentido de comprimento para servir.