O serviço de emergência 911 recebeu um chamado de um homem com uma espada samurai ameaçando as pessoas no calçadão da orla.
Já era noite e, quando a polícia chegou, viu o sujeito andando na praia e o chamou. Ele reagiu jogando uma pedra na direção dos oficiais.
Então, gritaram seu nome do barco do xerife; ele jogou outra pedra. Exigiram que largasse a espada; ele disse que ia matar um. Ameaçou sair da praia e, depois de alertá-lo, os policiais atiraram, com balas de borracha, em sua perna. Ele voltou, ainda segurando a lâmina de 1,2 m.
Leia mais
Presunto especial espanhol faz sucesso na China
Um país do Mediterrâneo onde as pessoas só engordam
Restaurantes de frutos mar buscam produtos sustentáveis
Se fosse em outra cidade – ou mesmo na Portland de pouco tempo atrás – o próximo passo certamente teria sido um confronto direto e, se ainda assim o homem não largasse a espada, o uso de força letal.
Porém, a Departamento de Polícia da cidade, estimulado em parte pelas conclusões da investigação realizada, em 2012, pelo Departamento de Justiça, passou anos criando e estabelecendo um programa de treinamento intensivo e novos protocolos para ensinar os oficiais a lidar com pessoas com problemas mentais.
Em um momento em que o comportamento policial está na berlinda, devido a uma série de ocorrências fatais que chamaram a atenção do país para questões como raça e problemas psicológicos, a iniciativa serve de modelo para outras seções nos EUA.
E naquele domingo de 2015, a polícia dali optou por uma saída diferente.
Às duas e meia da manhã, depois de passar horas tentando manter um diálogo com o indivíduo, os oficiais decidiram "largar mão" e foram embora, deixando-o sozinho na praia. Depois de uma busca à luz do dia, ele não foi encontrado.
São muitos os casos de civis com problemas mentais envolvidos em trocas de tiros com a polícia; segundo várias análises, 25 por cento dos que morrem vítimas de disparos policiais têm algum problema dessa ordem.
Em Chicago, por exemplo, os policiais que mataram um rapaz de 19 anos, Quintonio LeGrier, em dezembro, alegaram que tomaram a medida extrema porque o jovem avançou com um taco de beisebol. Em Denver, Paul Castaway, 35 anos, que tinha um histórico de problemas mentais, foi morto a tiros pela polícia, em 2015, por "ter se aproximado perigosamente" segurando uma faca na própria garganta. Houve ocorrências semelhantes em Albuquerque, Novo México, Dallas, Indianápolis e outras cidades.
Em resposta à indignação pública, muitos departamentos, como o de Portland, decidiram treinar melhor seu grupo e, em vários casos, adotar uma versão adaptada do modelo pioneiro de Memphis, no Tennessee, criado há quase trinta anos, conhecido como treinamento de intervenção em crises, ou CIT (sigla em inglês).
Estudos concluíram que o método pode alterar a forma como a polícia encara as pessoas com problemas mentais. E a abordagem, que ensina formas alternativas para atenuar encontros com potencial de violência antes que o uso da força bruta seja necessário, é útil em qualquer situação imprevisível, mesmo que não envolva uma crise de saúde mental, afirmam os especialistas.
Porém não se sabe exatamente se o curso leva realmente ao uso de menos força. As conclusões dos estudos são variadas, embora um que foi publicado recentemente sugira que o programa de Portland, baseado no CIT, está dando resultados. E para os entendidos, só o treinamento não é suficiente. Para que a abordagem funcione cem por cento é preciso que tenha o apoio incondicional da chefia do departamento, testes contínuos para verificação de efetividade e a ajuda dos profissionais da área de saúde mental.
"O treinamento é excelente, mas não faz mágica. O que realmente transforma o sistema é a cooperação de todos", diz Laura Usher, coordenadora do CIT da Aliança Nacional pelas Doenças Mentais.
Debate sinaliza uma mudança cultural
A decisão dos policiais de Portland de largar o homem da espada sozinho na praia gerou polêmica no próprio departamento. Muitos disseram que os colegas deveriam ter se empenhado mais. E se ele se ferisse ou matasse alguém?
Outros rebateram, alegando que era madrugada e que a área estava deserta. O homem não tinha cometido crime nenhum e um confronto poderia facilmente acabar com alguém ferido.
A verdade é que a discussão em si já é sinal de mudança.
"Há dez anos teríamos agido logo de cara. Optamos pela maneira nova de enfrentar a situação", explica Brad Yakots, especialista em saúde mental chamado ao local.
Como em outras cidades, as mudanças foram promovidas em Portland depois de uma fatalidade: em 17 de setembro de 2006, James Chasse Jr., vocalista de uma banda local de 42 anos, esquizofrênico, morreu em um confronto com a polícia.
O caso indignou a população. Em resposta, o Departamento revisou suas regras e exigiu que todos os seus membros fizessem 40 horas de CIT.
Porém, depois de casos ainda mais problemáticos envolvendo doentes mentais, uma investigação do Departamento de Justiça concluiu, em 2012, que a polícia "tinha exibido um padrão de uso de força desnecessário durante interação com pessoas que são ou parecem ser doentes mentais".
Dessa vez a reação da chefia foi mais agressiva: além do curso obrigatório para todos os membros da força, um grupo de cem oficiais teve que fazer mais 40 horas de instrução para saber como abordar casos mais complexos, envolvendo não só doentes mentais, mas viciados em drogas e/ou alcoólatras.
Os grupos passaram a contar com médicos especializados para acompanhamento dos casos, novos protocolos foram instaurados e o trabalho passou a envolver também as organizações de moradia.
"É mesmo uma questão de mudança na cultura", define a tenente Tashia Hager, responsável pela unidade que coordena as ações de saúde mental.
E observa: "Em casos como o do homem com a espada, há grandes chances de um resultado negativo, independente das decisões que se tome."
"Antigamente, os policiais aprendiam o 'Se você fizer x, vou reagir com y'; agora eles são encorajados a questionar se o y é realmente necessário."
Para Yakots, que é policial há nove anos, a iniciativa tem sido um sucesso, mas acrescenta: "Se há tropeços? Claro que há, nada é perfeito. Em muitas ocasiões temos recursos limitados."
Foi em uma noite de segunda, em fevereiro, que ele e o parceiro, Michael Hastings, faziam a ronda pelas instalações improvisadas dos sem-teto e pelo centro, rádio ligado caso fossem necessários em outro local.
Nessa patrulha, tiveram que lidar com um adolescente ameaçando se jogar de uma passarela; uma universitária tinha ligado para a mãe, que morava em outra cidade, para dizer que ia se matar; uma mulher de 38 anos estava na porta de uma clínica de tratamento mental exigindo ser internada porque era "suicida e homicida".
Hastings disse que, antes da mudança, a atitude recomendada seria simplesmente chegar, questionar e deter.
Só que levar esse pessoal para o PS ou para a delegacia não ajudava em nada. "Quase sempre são liberados depois de três, quatro horas", revela.
E completa, dizendo que, pelo menos em Portland, a grande maioria da força policial já aceita que parte do trabalho é lidar com a doença mental e ajudar a encontrar soluções em longo prazo.
"Percebemos que assim é que é e nós é que temos que acudir", conclui.