A crise do "presidencialismo de coalizão" brasileiro tem sua contraface, neste mesmo momento, em uma situação igualmente inusitada vivida pela Espanha parlamentarista. Na terça-feira, o rei Felipe VI teve de dissolver o parlamento e convocou novas eleições legislativas. Motivo: os partidos mais votados nas eleições de dezembro do ano passado, por maior que fosse o empenho do próprio rei, não conseguiram formar um governo de coalizão, com a maioria simples – de 176 entre 350 deputados.
Até o final de junho, será pelo menos meio ano de um governo provisório, fraco, comandado por Mariano Rajoy, do PP (centro-direita), com competências limitadas e sem interlocução. E isso é inédito na Espanha desde a redemocratização com a morte do "generalíssimo" Francisco Franco, em 1975 – Franco governou o país entre 1939 e 1975.
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Os espanhóis precisam retornar às urnas para recompor o parlamento. Isso ocorrerá em 26 de junho. Para o gabinete ser formado, é necessário que um partido consiga maioria ou que seja formada coalizão que atinja assentos suficientes para formar essa maioria – e nada garante que isso será possível. Só então, escolhe-se o premier, o chefe de governo, que comandará o Executivo.
Rajoy governa provisoriamente porque o PP conseguiu a maioria dos votos em dezembro – apenas 28,72%. Precisaria formar uma coalizão. Em segundo lugar, ficou seu adversário histórico, o socialista PSOE, com 22%. Depois, o Podemos (esquerda), com 20,66%, e o Ciudadanos (centro), com 13,93%. A divisão do eleitorado denota fragmentação. Seria necessário mais de um partido para a formação do gabinete, e nenhum deles quis se aliar ao PP, desgastado pelo fracasso na economia e por acusações de corrupção. A alternativa seria o PSOE formar o gabinete com o Podemos e o Ciudadanos, mas as negociações não prosperaram. Para 26 de junho, resta a esperança de Patxi López (PSOE), presidente do parlamento:
– Torçamos para termos aprendido a lição e que cheguemos a um acordo.
Um dos maiores especialistas em temas europeus, o cientista político espanhol José Ignacio Torreblanca é crítico à estrutura institucional do seu país. A compara ao "lixo espacial" que "ameaça a integridade dos satélites".
– Algo semelhante ocorre na política, em que há regras que se tornam lixo inútil e perigoso – diz, enfatizando que o artigo 113 da Constituição impõe condições que dificultam a deposição de um gabinete (veja quadro no final do texto).
Pela explicação de Torreblanca, fica claro que a situação é a contraface parlamentarista da crise brasileira com seu presidencialismo de coalizão. Diz ele:
– Uma norma criada para dar estabilidade pode provocar o oposto. Na Espanha, um governo fica blindado no dia seguinte à posse. Isso desencoraja, por exemplo, dissidentes do PP a apoiarem o PSOE (centro-esquerda) porque sabem que, mais adiante, não poderiam derrubá-lo. Isso impede a formação de um governo e provoca instabilidade.
O problema é que as pesquisas já projetam, para as próximas eleições, quadro semelhante ao de dezembro. O contexto também não mudou. O quadro é de penúria econômica e de uma elite política manchada por acusações de corrupção, com o fim da hegemonia dos dois partidos tradicionais, o PP e o PSOE. Foram essas as siglas que governaram a Espanha desde a redemocratização, lá se vão quatro décadas. O surgimento do Podemos e do Ciudadanos provocou a fragmentação e a inviabilização do atual sistema de coalizões.
– A solução poderia ser os partidos alterarem os programas. O PP mudaria suas políticas controversas, como a reforma trabalhista e a segurança. O PSOE e o Ciudadanos poderiam aceitar um referendo não-vinculativo na Catalunha, e o Podemos talvez aceitasse o equilíbrio das contas públicas. Mas nada disso se vislumbra – diz Torreblanca.
A jornalista espanhola Victoria Lafora, analista política da TVE, diz:
– Vivemos o pior fracasso dos partidos políticos desde a morte de Franco.
E completa, incrédula:
– Há egolatria dos líderes.
Victoria vê o seguinte quadro para o futuro próximo: é inviável unir PP e PSOE. O PP mostra "soberba" e fecha portas para negociações. O PSOE e o Podemos lutam pela hegemonia da esquerda. E as consequências, segundo ela, são uma trava nos investimentos e o agravamento dos problemas sociais.
Um difícil contexto
O impasse da Espanha ocorre em meio ao mau humor generalizado dos eleitores, irritados com a austeridade e a corrupção, o que deu espaço a dois novos partidos: o Podemos, que saiu das urnas com 65 deputados, e o Ciudadanos, com 40 cadeiras no parlamento. Mariano Rajoy tem poder apenas para administrar os assuntos cotidianos e está desautorizado a realizar qualquer reforma. Tal situação provoca ainda mais irritação popular. Seis em cada 10 espanhóis (61,2%) consideram que a situação política do país é "ruim ou muito ruim", segundo pesquisa do Centro de Pesquisas Sociológicas (CIS).
A Espanha é a quarta economia da zona do euro e ainda tenta sarar as feridas da crise recente, com taxa de desemprego em 21%, a segunda mais elevada da União Europeia depois da registrada pela Grécia, e reduzir seu déficit público. Após apresentar significativo desenvolvimento econômico na década de 1990 até 2007, o país sentiu o impacto da crise econômica mundial iniciada em 2008. Ainda hoje, os espanhóis sofrem com o alto índice de desemprego, principalmente entre os jovens, elevada dívida pública e baixo desempenho da economia. As reformas econômicas dos últimos anos enfatizaram o corte nos gastos públicos, seguindo-se a receita ortodoxa da austeridade. Além de os índices continuarem pífios, o custo social dessa alternativa é grande, e isso se reflete na política. Para agravar a situação, praticamente toda a Europa também sofre com a crise.
Décima terceira maior economia do mundo, a Espanha tem Produto Interno Bruto de US$ 1,199 trilhão conforme dados de 2015, ano em que o país viveu alguma recuperação, com taxa de crescimento em 3,2%.
Estabilidade no poder
Artigo 113 da Constituição espanhola:
Determina que moção de censura seja pedida por pelo menos 10% dos deputados (35), já com candidato alternativo à chefia de governo.
Para aprovar a remoção, são necessários 176 votos.
Caso a moção seja rejeitada, os proponentes não poderão apresentar outra.
Isso inibe a realização de coalizões, porque o partido que adere teme ficar engessado.