O calvário enfrentado por pessoas humildes, que investiram suas economias no sonho da casa própria e perderam dinheiro para uma organização criminosa sediada em Canoas, levou a Polícia Civil a desencadear na manhã desta segunda-feira a Operação Nosso Lar.
Os investigados são suspeitos de vender casas pré-fabricadas e não entregá-las. Já foram identificadas 28 famílias vítimas do golpe, que tiveram prejuízo de cerca de R$ 500 mil. O valor deve ultrapassar R$ 1 milhão, pois a polícia estima que o total de pessoas enganadas pela empresa Casas Canoense, que é fantasma, seja de cerca de 80.
Em dois casos, os clientes da Canoense ficaram sem ter onde morar. Ao tratar da construção, os responsáveis pela Canoense, ao avaliar o terreno, mandaram as vítimas demolirem as casas em que moravam para dar espaço ao novo imóvel. A investigação começou na 1ª Delegacia da Polícia Civil de Canoas, onde foram registradas as primeiras ocorrências, no ano passado.
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Em março, o caso passou a ser investigado também pelos delegados Márcio Moreno e Gustavo Pereira, da Delegacia de Repressão ao Crime de Lavagem de Dinheiro, ligada ao Gabinete de Inteligência e Assuntos Estratégicos da Polícia Civil. Com o uso de tecnologia do laboratório de lavagem de dinheiro, a polícia rastreou a ação dos suspeitos, que usaram empresas fantasmas para aplicar os golpes e receber dinheiro dos lesados.
A polícia optou por não divulgar os nomes dos investigados. Estão sendo cumpridos seis mandados de prisão preventiva, oito de condução coercitiva e 20 mandados de busca e apreensão, em três cidades: Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo.
– É um grupo bem estruturado e capitalizado, com capacidade de expansão, sai de um lugar e aluga salas em outro, tem bom material de divulgação. Nós identificamos vítimas e o núcleo duro do grupo. Os bastidores da atuação foi descoberto pela delegacia de lavagem – explicou o delegado Thiago Bennemann Gonçalves, titular da 1ª DP de Canoas.
Ao levar uma investigação de estelionato para o âmbito de organização criminosa e lavagem de dinheiro, a polícia busca conseguir cessar a ação dos suspeitos, que há anos reúnem antecedentes policiais por golpes sem efetiva punição. A investigação de lavagem de dinheiro, por ser mais complexa e depender de informações de quebras de sigilo bancário, costuma levar mais tempo até a deflagração. Mas a polícia decidiu agir agora porque detectou que o grupo segue aplicando o golpe.
– Decidimos fazer essa primeira fase para cessar a ação dos golpistas, que seguem fazendo vítimas – explica o delegado Márcio Moreno.
Pelo menos desde 2015, a empresa Casas Canoense passou a oferecer em anúncios na internet casas pré-fabricadas com condições atrativas, por valores que variavam de R$ 15 a 25 mil. Cada cliente dava de entrada o valor que tivesse disponível e dividia o restante em 24 parcelas. A Casas Canoense não existe, é uma empresa de fachada, que usou o endereço de outra que já estava estabelecida em Canoas: a Escadas Canoense.
A Escadas pertence ao pai do suspeito investigado como dono da Casas Canoense. Segundo a polícia, a Escadas até pintou a fachada com as cores em que a Casas Canoense aparecia no anúncio na internet. Dessa forma, foi dada aparência de legalidade e solidez à empresa fantasma.
– Se algum cliente perguntasse na vizinhança sobre a empresa de casas, teria referência de que já funcionava há anos no local. Na verdade, a que funcionava era a Escadas Canoense – diz o delegado Moreno.
Depois de pagar a entrada e algumas parcelas sem ver a obra andar, vítimas começaram a pressionar o principal suspeito, que tem antecedentes criminais por estelionato e já foi dono de outras empresas. Ele dava desculpas como excesso de chuva ou demora na entrega de materiais. Em pelo menos dois, o suspeito chegou a desfazer o negócio e simulou a devolução do dinheiro das vítimas ao depositar cheques que não tinham fundos. Em janeiro, as portas da suposta sede da Casas Canoense, na Rua Dr Barcelos, 1.501, em Canoas, fecharam. A Escadas Canoense também deixou de funcionar no local. A primeira ocorrência policial foi registrada em setembro.
Com a análise dos contratos, a polícia reuniu dados e descobriu que o suspeito usava o nome de outras duas empresas no negócio: da Incorporadora e Construtora I. Chaves Ltda. e da Central de EPI's do Brasil Ltda.. Uma aparecia como contratada para construir a casa e outra como dona da conta para qual os clientes deveriam direcionar depósitos. Uma delas pertence a uma ex-mulher do dono da Casas Canoense.
A polícia apurou que as 28 vítimas já identificadas deram aos golpistas R$ 425 mil. Segundo o delegado Moreno, os valores eram direcionados a outras empresas numa tentativa de ocultar os valores recebidos pela Casas Canoense e até afastar eventuais suspeitas em torno da empresa fantasma.
Em março, reportagens sobre o golpe foram veiculadas, o que teria feito com que o principal suspeito recuasse nas ações, deixando de anunciar para atrair novos clientes. Mas durante a apuração a polícia detectou que outro suspeito ligado ao grupo estava fazendo os negócios em nome de outras duas novas empresas, em Porto Alegre, que estão sendo investigadas. Na página do facebook de uma delas, inclusive, há relatos de vítimas cobrando a execução de suas obras e a devolução de dinheiro.
A partir dessa primeira fase da operação, a polícia seguirá o trabalho para identificar outros envolvidos e rastrear bens e o caminho do dinheiro. Também há a suspeita de que esse tipo de golpe estivesse sendo aplicado há mais anos, por isso, mais vítimas devem aparecer.
Sonho virou transtorno e incomodação
Para Miriane Soares Machado, 22 anos, o sonho da casa própria estava prestes a se concretizar depois de ter visto um anúncio da Casas Canoense. O cunhado, Sílvio, casado com uma irmã dela, também buscava meios de ter uma casa.
O sonho das duas famílias acabou se transformando em transtorno e incomodação, e as levou a ficar sem ter onde morar: há um ano, Miriane e a irmã moram com suas famílias nas garagens das casas de familiares, em Viamão.
– Vimos o anúncio. Achamos as condições bem acessíveis e fomos lá dia 24 de agosto. No dia 27, assinei o contrato e entreguei R$ 8,5 mil – conta Miriane.
A casa comprada por ela custaria ao todo R$ 16,5 mil. A obra deveria começar em 15 dias e as chaves da casa, entregues em 60 dias.
– Eles vieram olhar meu terreno e do meu cunhado e mandaram demolir as casas. Nós pagamos entrada e primeira parcela. Quando notamos que a obra não começava, não pagamos a segunda parcela. No meu terreno só entregaram pedras. Estão lá até hoje – lamenta Miriane.
Lesada pelos golpistas, a jovem ainda teve dificuldades para comunicar o caso às autoridades. Disse que procurou três delegacias em Viamão e em Alvorada e lhe foi dito que deveria ir ao Procon. Só conseguiu registrar o caso na 1ª DP de Canoas. Foi quando a investigação começou.
– Eu sabia de outras vítimas. As procurei para que fossem até a polícia – conta ela.
Miriane e o cunhado conseguiram desfazer o negócio, mas foram novamente enganados pelo dono da Casas Canoense. Ele fez depósito em cheque em dezembro, perto do Natal. Até o bando informá-los de que o cheque não tinha fundos, deu tempo de a empresa fechar as portas e todos envolvidos sumirem. A irmã de Miriane já está conseguindo construir uma nova casa. Ela ainda não teve condições. Mas tem esperança de recuperar o dinheiro.