Os móveis já estavam todos comprados. Depois de seis anos de namoro, Éverton Cunha Gonçalves, 25 anos, e Bruna Maia, 26 anos, procurariam uma casa para iniciarem a vida juntos assim que ele recebesse alta hospitalar depois de uma cirurgia no tornozelo.
Funcionário de uma distribuidora de bebidas no Bairro Ponta Grossa, Zona Sul de Porto Alegre, onde morou a vida inteira, Éverton, ou o Ligeirinho, como os amigos o chamavam, era o atacante do Tsunami e do Lageado, no futebol sete. O futebol, na verdade, era a sua vida. Nunca teve nenhum envolvimento criminoso. Mas virou alvo dos dois tiros fatais, na cabeça, em pleno leito do Hospital Cristo Redentor, na tarde da última terça-feira. O caso é apurado pela 3ª DHPP, que não descarta a hipótese de uma execução por engano.
– Ouvimos parentes, amigos e o histórico da vida da vítima. Não há nada que o incrimine, mas ainda estamos em uma investigação aberta – afirma o delegado Cassiano Cabral.
Foi Bruna quem atendeu ao chamado do hospital. Achou que seria chamada pela liberação do companheiro. Era uma tragédia que até agora ninguém entendeu na família e em toda a vizinhança da Zona Sul.
– Todos aqui amavam ele. Era um guri trabalhador desde criança, sempre respeitador. Nunca ouvimos falar nem de briga que ele estivesse envolvido – conta uma vizinha.
O mais velho entre três irmãos, Éverton era o xodó da avó, Helena Moreira da Cunha, 71 anos. Sempre morou com ela e a mãe em uma das casas da Rua Chico Xavier. Naquele que, segundo os familiares, era o seu chão. Não sabia sequer circular pela Zona Norte da Capital, onde estava internado.
– Ele não me deixava nem caminhar sozinha, estava sempre me apoiando, levando a médico. Não poderia ter acontecido isso com ele, o meu neto que nunca teve defeitos. É difícil acreditar nisso tudo – lamenta a avó.
Éverton foi sepultado na quarta-feira, no Cemitério Jardim da Paz.
Restaram as medalhas do Ligeirinho
As medalhas penduradas na parede. Camisetas e calções dobrados sobre a cama. Em um canto, as chuteiras. O quarto de Éverton, na manhã de quarta-feira, ainda estava como ele deixou no dia 20 de março, quando precisou ser internado no Hospital Cristo Redentor.
Atacante do Lageado, clube da Zona Sul da Capital, ele sofreu uma lesão muscular durante um treino. Ao ser atendido em uma clínica, percebeu que a lesão havia agravado o problema nos tendões do tornozelo direito. Foi encaminhado ao hospital para passar por cirurgia. O procedimento deveria ter acontecido há uma semana, mas faltava uma ressonância. A perspectiva era de que fosse liberado ontem do setor de traumatologia. As amigos, ficou a última imagem alegre do Ligeirinho.
– Era um cara daqueles que não brigava nem jogando bola. Não gostava de sair para festas, vivia por aqui, ajudando em casa e com os amigos – conta Rafael Viegas Monteiro, 28 anos. Há pelo menos 15, era amigo de Éverton.
Há pouco mais de duas semanas, ele, já de muletas, participou do churrasco da turma do Tsunami, o time de futebol sete criado por ele e os amigos há três anos. Comemoravam o último troféu conquistado pelo Ligeirinho.
Polícia tenta identificar suspeitos
Até a tarde de quarta-feira, os investigadores da 3ª DHPP ainda coletavam as imagens de câmeras de monitoramento do Hospital Cristo Redentor que possam identificar o autor dos disparos que vitimaram Éverton.
Não há certeza sequer se o criminoso, provavelmente acompanhado de outro homem, acessou o terceiro andar – onde estava internada a vítima – como visitante ou se entrou pelo ambulatório.
– Temos uma descrição muito vaga dos suspeitos – aponta o delegado Cassiano Cabral.
A hipótese de que Éverton possa ter sido morto por engano é reforçada por pelo menos um aspecto. Havia naquele momento, por volta das 13h30min de terça-feira, um paciente sob custódia da Susepe em atendimento. O andar, segundo a direção do Grupo Hospitalar Conceição, não corresponde ao determinado para atendimentos de pessoas custodiadas. Por isso, não estaria sujeito a protocolos de segurança.
Funcionários perceberam a presença dos dois suspeitos – um deles armado com uma pistola – minutos antes do crime. Uma mensagem chegou a ser postada em uma rede social dando o alerta e pedindo socorro à polícia. Segundo testemunhas, os dois homens teriam percorrido todo o corredor da traumatologia espiando cada um dos quartos. Ao chegarem no 56, onde Éverton estava com outros dois pacientes, entraram e cometeram o crime. Fugiram em um carro preto.
"Qualquer um pode entrar"
Uma reunião dos funcionários do Grupo Hospitalar Conceição na manhã de quarta-feira reforçou a necessidade de reforço nas medidas de segurança da unidade hospitalar que é referência para traumas na Zona Norte da Capital.
Uma médica que atua há dois anos no Hospital Cristo Redentor conversou com a reportagem e revelou que "isso poderia acontecer a qualquer momento".
Diário Gaúcho – Vocês se sente segura trabalhando no hospital?
Médica – Não tem segurança. A impressão é de que qualquer um pode entrar. Eu mesma acesso pela entrada de visitantes e nunca me foi solicitado o crachá. Nunca pediram ou checaram se eu estava com a identificação. No andar onde aconteceu o crime, há quatro meses há uma porta que só deveria dar acesso com o uso do crachá. Mas ela está sempre aberta. Passa quem quiser.
Diário Gaúcho – Pacientes sob custódia são acompanhados por agentes de segurança?
Médica – Geralmente são acompanhados por dois PMs enquanto são atendidos. É uma situação sempre tensa, mesmo para quem não está diretamente neste atendimento. Os custodiados geralmente esperam justamente no corredor deste setor onde o paciente foi morto.
Diário Gaúcho – Depois do crime, mudou algo?
Médica – Nada. Hoje (quarta-feira) a porta está escancarada de novo.
Tiros, correria e pânico
Luciana da Rosa Vaz, 32 anos, é auxiliar administrativa e trabalha há dez anos no HCR. Ela atua no terceiro andar, como secretária de posto, trabalhando com a documentação dos pacientes e outras atividades administrativas. Na terça-feira, a jornada de Luciana havia começado às 13h. Às 13h30min, tão logo iniciou o horário da visita, a rotina foi alterada pelo som dos tiros disparados no quarto 56. O local de trabalho dela transformou-se em cena de crime.
– Todo mundo se jogou no chão, tinha muita gente no andar por causa da visita. As gurias da enfermagem saíram correndo para atender o paciente (Everton Cunha Gonçalves, 25 anos). Eu não sabia o que estava acontecendo. Eu achava que era parada (cardíaca) e minha função é ligar para a UTI. Mas não era parada. Quando a enfermeira disse: "foi tiro", sabe quando tu sai fora do corpo? Não tem como ficar calma. Daqui a pouco a Brigada vai estar aí, vai dar um tiroteio muito grande, ou a pessoa continua aí, vai precisar de um refém para sair, meu Deus do céu, a gente não sabe o que vai fazer – disse Luciana.
Segundo ela, o paciente baleado ainda foi socorrido pela equipe do plantão da UTI. Para isso, teve de ser deslocado para outro quarto, que ficava em frente à porta de Luciana. Os dois outros pacientes que compartilhavam o quarto com Everton ficaram desesperados. Um teve alta e o outro foi embora. Enquanto isso, a auxiliar administrativa se preparou para chamar os familiares da vítima, localizar o plantão da UTI, ligar para o médico responsável pelo paciente, atender o plantão da Susepe.
– Quando eu saí, caí na real, chorei, a enfermeira me abraçou, me agradeceu por ter ficado, foi muito difícil. As gurias que fizeram o primeiro atendimento elas não conseguiram ficar. É uma cena que a gente não tá preparada.
No final do dia, Luciana sentiu o peso de ter vivido um dia trágico.
– Passei o dia mal, no automático. Às 18h42min, no final do plantão, eu desabei, me dei conta de que estava saindo do serviço, viva, que ia pegar o meu filho na escola, num dia que começou e que eu não sabia qual era o final dele.
Comissão para melhorar a segurança
Na quarta-feira pela manhã, os trabalhadores do Hospital Cristo Redentor (HCR) se reuniram, a partir da convocação da Associação dos Servidores do Grupo Hospitalar Conceição (ASERGHC), para discutir a segurança no trabalho.
Do encontro, ficou definido que uma comissão formada por entidades que representam os trabalhadores e a direção vai se reunir para melhorar o projeto de segurança construído em 2014. Para o presidente do Sindisaúde-RS, Arlindo Ritter, no entanto, o plano de segurança criado pelo hospital não foi colocado em prática.
– Esperamos por soluções da direção, mas não foi implantado sistema de controle de acesso, as câmaras de segurança não funcionam e falta pessoal – disse o presidente da ASERGHC, Valmor Guedes.
Na reunião, foram apontadas cinco medidas emergenciais reivindicadas pelos funcionários e entregues à superintendência do Grupo Hospitalar Conceição. São elas: a restrição ao número de visitantes e acompanhantes, a solicitação da presença da Brigada Militar com uma viatura permanente em frente ao HCR, a instalação de detectores de metal e raio-X (nos moldes do existente no Fórum Central), a eliminação do acesso do público ao banheiro da emergência do HCR e o aumento do efetivo de vigilantes com a contratação dos aprovados em concurso. A pauta será encaminhada ao Ministério Público.
O diretor administrativo e financeiro do GHC, Gilberto Barichello, disse que em 2014 foi implantado um protocolo de segurança para feridos por arma e fogo e arma branca no sentido de proteger os pacientes, desde a identificação das visitas até a restrição do ambiente. O caso ocorrido na terça-feira foge a esta característica.
Segundo Barichello, as 22 câmeras de segurança da instituição estavam funcionando (a empresa fez a manutenção no último dia 20). Nenhum hospital no país, conforme o diretor, possui detector de metais, considerado inviável na rotina do HCR. A revista íntima também não pode ser realizada.
O diretor disse que está em processo licitatório a compra de catracas que serão instaladas ainda no primeiro semestre a fim de oferecer mais segurança. Também haverá reforço nas câmeras e controladores de porta codin (para gerenciamento de entradas e saídas).
– O problema de segurança não é só no hospital, mas na sociedade – destaca o diretor.
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