A inflação que encosta nos 30% anuais e o uso de estratégias tidas como autoritárias têm resultado em um alto custo para o novo presidente da Argentina, Mauricio Macri, que aterrissa na planície de um país complexo. De acordo com Mariel Fornoni, diretora do instituto Management & Fit, os índices de aprovação do presidente se mantiveram estáveis nos 70 dias seguintes à posse em 10 de dezembro. Ainda assim, já se percebe uma perda de fôlego.
Macri, de acordo com o instituto, baixou de 56,6% para 49,8% de imagem positiva. A consultora Ricardo Rouvier y Asociados apresentou números mais fortes: queda de um patamar alto, de 71,3%, para 60,5% no fechamento do segundo mês (35,8% de muito bom/bom e 24,7% de regular/bom). A Ricardo Rouvier y Asociados foi além na pesquisa, que continua indicando números altos maculados por um princípio de desgaste. Constatou que houve aumento na impopularidade de Macri, de 26% em dezembro para 35% um bimestre depois. E perguntou aos consultados sobre o porquê da variação. As respostas mais frequentes: "A inflação está alta", "o desemprego é crescente" e "a luz vai subir demais".
Em entrevista coletiva, Macri demonstrou desconforto, em especial quanto à inflação e ao comprometimento que ela pode provocar no crescimento do país.
– Não podemos seguir convivendo com esse processo de inflação, que afeta nossa capacidade de crescimento.
A expectativa é de que a inflação se mantenha alta até março. Motivo: o forte aumento das tarifas de energia elétrica, antes subsidiadas, cujas expectativas são de subir 300%. Isso repercutiria em diversos produtos e serviços. Macri atribui as distorções à herança deixada por Cristina Kirchner.
Entidades empresariais trabalham com dados alarmantes. Exemplos: neste início de ano, o consumo de alimentos caiu 2,5%, a venda de carros caiu 15%, a de eletrodomésticos 4,8% e a de roupas 2,7%.
– É possível que a recessão iniba a inflação, e isso também é sério – diz o economista Enrique Gómez.
O ministro argentino da Economia, Alfonso Prat-Gay, recebeu a missão de reduzir os 7% de déficit público que o país acumula. Por isso, os cortes de subsídios, que chegariam a 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Outra atribuição: renegociar as dívidas pendentes com os credores especulativos – os chamados "abutres".
O objetivo é o de melhorar o ambiente para atrair investimentos. E, ao que parece, essa meta está funcionando. Empresas brasileiras fazem planos olhando o outro lado da fronteira. A JBS – processadora de carne que mantém hoje apenas a unidade de Rosario – deve reabrir as quatro unidades fechadas nos últimos três anos. A gaúcha Marcopolo já prevê incremento de pelo menos 50% na previsão de ônibus exportados para a Argentina.
Simpatia de empresários, mas pressão interna das centrais
Da parte do governo brasileiro, também há sinais de que novas relações comerciais se avizinham. Durante encontro do ministro do Desenvolvimento, Armando Monteiro, com o ministro da Produção argentino, Francisco Cabrera, o Brasil aproveitou o clima e propôs o livre comércio para o setor automotivo.
Cabrera acatou a sugestão e endossou a ideia de abertura para a Europa, em relação à qual o governo argentino anterior resistia. Os dados atuais mostram que o comércio Brasil-Argentina é descendente. Foi dos US$ 40 bilhões de 2011 aos US$ 22,5 bilhões em 2015. A ideia é reverter essa situação e reanimar o Mercosul. Ao mesmo tempo em que medidas assim são tomadas, chovem críticas a uma suposta visão restrita de Macri a questões empresariais.
Os protestos se avolumaram nos últimos dias. O presidente da Confederação dos Trabalhadores Argentinos (CTA), demonstra preocupação em relação ao desemprego na iniciativa privada e às demissões de funcionários públicos sob a alegação de que, no kirchnerismo, a máquina estatal inchou.
– Se por trás de tudo isso há um plano para reduzir tamanho do Estado argentino, que já é pequeno em comparação com outros países da região, certamente haverá conflito – avisa Micheli.
O governo reagiu ao acosso sindical. Anunciou aumento no piso do Imposto de Renda. Em 1º de março, só pagará a alíquota quem recebe mais de 30 mil pesos (R$ 8 mil) por mês – antes, o teto era R$ 4 mil, a metade. E a mudança retroage a 1º de janeiro. Assim, Macri espera que os trabalhadores reduzam os pedidos de aumentos. Sindicatos têm defendido incremento salarial de pelo menos 32%, o que impactaria na inflação.
Mesmo elogiando a medida, líderes sindicais a definiram como insuficiente.
Artistas e sindicalistas já promovem protestos
Sindicatos já saíram às ruas reclamando contra a carestia provocada pelas primeiras medidas, e, em especial, o setor cultural desencadeou ruidosos protestos. Os episódios mais simbólicos foram os bloqueios de estradas por todo o país e um minifestival liderado pelo músico Fito Páez, que reuniu milhares de manifestantes em uma praça em Buenos Aires no dia 13. Os manifestantes classificavam como autoritárias as medidas de Macri. Gritavam frases contra demissões e a redução dos programas sociais. Em um vídeo no YouTube, artistas, ao som da música "Y dale alegría a mi corazón" – de Fito –, falavam as palavras "alegria", "trabalho" e "liberdade".
Até o brasileiro Chico Buarque assinou carta aberta a Macri e ao prefeito da cidade de Buenos Aires (capital federal), Horacio Rodríguez Larreta, aliado do presidente, pedindo a demissão do secretário da Cultura, Darío Lopérfido. O secretário dissera que o número de 30 mil mortos na ditadura era "mentira" – depois, retratou-se, dizendo que a frase fora tirada de contexto. Mexeu com um tema sensível no país que enfrentou um dos regimes mais violentos já vividos na América Latina, entre 1976 e 1983. O governo anunciou que adotará "tolerância zero" aos bloqueios de estradas.
- Não podemos deixar que o país vire um caos – diz a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, do núcleo duro de Macri. O historiador Carlos Malamud criticou os manifestantes por compararem o governo de Macri com a ditadura e dizerem que "cargos são passageiros, mas a lealdade é eterna". Salientando que muitos deles eram beneficiadas por programas do governo ou tinham cargos públicos, Malamud diz:
– Apesar da derrota eleitoral, o kirchnerismo e seus intelectuais se veem como legitimados pelo povo.
Mesmo antes dos cem primeiros dias de cortesia que a oposição costuma conceder a governos democráticos, os defensores da presidente anterior decidiram enfrentar qualquer medida macrista como um brutal ataque às liberdades democráticas e aos direitos humanos.
Dezenas de bloqueios nos principais acessos a Buenos Aires tiveram como objetivo reclamar a libertação da dirigente social Milagro Sala, presa há um mês em uma polêmica causa judicial. A polícia se limitou a desviar o trânsito até que os manifestantes se retirassem de forma pacífica.
O cientista político Julio Burdman prevê uma crise política. Define como "contraproducente" a decisão de governar "sozinho" e com minoria no parlamento. Até em razão dessa solidão, as medidas têm sido tomadas sem as mediações naturais em uma aliança política de sustentação do governo.
– Essa fórmula não pode se estender por quatro anos. Macri terá de compartilhar o poder com setores do peronismo para chegar a acordos de governabilidade – diz ele.
Analista diz que governo falha ao não fragmentar o peronismo
Burdman critica a estratégia do presidente. Lembra que, antes de assumir, ele tinha a meta de aproveitar a "orfandade" dos kirchneristas para atraí-los. Kirchneristas são peronistas liderados pelos ex-presidentes Néstor (morto em 2010) e Cristina Kirchner.
– O ideal para Macri seria se aproveitar do peronismo confuso e fragmentado. Mas, com as medidas tomadas, o efeito é oposto: unifica o peronismo. A fragmentação necessária para Macri desmoronou. Um espírito conservador se apodera da administração e une o peronismo – acrescenta Burdman, interpretando as medidas como "um imperativo de mostrar coragem, decisão e audácia" ao governar por decretos para disciplinar a herança do governo anterior.
O jornalista Jorge Lanata, desafeto dos Kirchner, vê as demissões como "ousadas".
– Há coisas que me impressionam. Uma é a questão dos funcionários públicos. Qualquer demissão em massa é injusta. Mas algo foi feito – diz, ponderando não ter gostado da nomeação de juízes por decreto e dos dados da inflação ainda inconfiáveis.
Lanata define março ou abril como o final do prazo para o governo mostrar um perfil mais definido de administração. Considera prematura uma avaliação mais consistente. O cientista político Fabian Bosoer entende que Macri "mexeu em um vespeiro" e flertou com o "hiperpresidencialismo" ao assinar decretos e afastar funcionários. Lembra, porém, que os antigos governistas faziam o mesmo e agora falam em "independência judicial" e "divisão de poderes".
– Fica um ensimanento da alternância no poder: o sistema condiciona os atores e lhes impõe explicar suas decisões e meditar sobre seus argumentos conforme o lugar em que estão postos no tabuleiro – diz Bosoer
Medidas polêmicas
1. Renegociação com os abutres
A dureza com que Cristina Kirchner tratou os credores especulativos – os 7% dos que rejeitaram o acordo da dívida que aliviara as finanças do país anos atrás – era vista com simpatia por muitos argentinos. Tratava-se, segundo eles, de gesto soberano do país contra a especulação predatória. Macri mudou esse discurso. Resolveu se sentar à mesa para conversar com os chamados "abutres". A meta dele é resolver um gargalo para voltar a atrair investimentos. A proposta argentina foi de pagar a dívida com 25% de desconto.As negociações continuam, em Nova York.
2. Gestão por decretos
Macri assumiu ansioso por mostrar a que vinha após 12 anos de kirchnerismo. O Congresso, de maioria oposicionista, estava em recesso. Em vez de convocar sessões extraordinárias e negociar as medidas, o novo presidente apelou para os Decretos de Necessidade e Urgência (DNU). As críticas foram intensas, da parte de adversários e até de aliados. A medida é legal,mas vista como ilegítima e autoritária. Entre outras determinações tomadas por DNU, foram nomeados novos juízes da Corte Suprema e modificada a polêmica Lei da Mídia.
3. Eliminação de subsídios
Ao eliminar subsídios à energia, Macri comprou brigas e provocou aumentos que podem chegar a 300%. A medida foi chamada de "tarifaço elétrico". Consumidores passarão a pagar, já em março, seis vezes mais. Uma das metas do novo presidente é diminuir o consumo para evitar os frequentes apagões na Argentina. Macri também determinou a desvalorização do peso. Tudo isso incrementa a inflação e provoca desconforto na população. O desgaste do governo é natural. Em meio a tudo isso, iniciaram-se as negociações salariais. As centrais sindicais querem pelo menos 32% de reajuste.
4. Demissões em massa
Nos 12 anos de kirchnerismo, dobraram os gastos do governo em relação ao PIB. O presidente tomou como prioridade "desinchar" a folha de pessoal. Algo como 4 milhões de argentinos são funcionários públicos nas diferentes esferas da federação. Isso significa 10% da população. Eram 2,3 milhões antes de 2003, quando se iniciou a hegemonia kirchnerista. Caso emblemático: não foram renovados os contratos de 85% dos funcionários do Centro Cultural Kirchner (CCK). Até aliados alertaram que muitos demitidos não deveriam se enquadrar entre os dispensáveis. A Associação dos Trabalhadores do Estado (ATE) convocou paralisação para quarta-feira.
5. A prisão de Milagro Sala
A prisão em 16 de janeiro, da dirigente comunitária Milagro Sala, deputada no Parlasul e ex-deputada provincial, pôs entidades de direitos humanos em polvorosa. Milagro lidera o movimento Tupac Amaru. Ajudou pessoas em situação de risco, especialmente indígenas da província de Jujuy, uma das mais pobres. Contou com fundos estatais para erguer habitações. Seus detratores dizem que criou um Estado paralelo e se corrompeu. Na origem da prisão, estava a "instigação a cometer ilícitos" ao liderar acampamento em frente à sede do governo de Jujuy. Os críticos a Macri veem na situação perseguição política e criminalização dos movimentos sociais. Até o papa Francisco,amigo de Macri, mandou um rosário para Milagro.