Quando o mar rasga a Barra de Tramandaí, divisa com Imbé, no Litoral Norte, a atenção de quem está nas margens do canal fixa na água. São dezenas de pescadores à espera de um momento que, para eles, é sagrado. Nas mãos, carregam tarrafas de quase 5kg. No olhar, a hora certa de jogar a rede em busca do sustento.
Eles dependem, porém, da colaboração de parceiros que não falam, mas indicam onde está o peixe. É no apontar do bico ou da nadadeira de um dos dez botos que frequentam o estuário que se reconhece o momento certo da pesca.
Na Barra de Tramandaí, nem o mais sábio pescador consegue tirar o peixe sem o auxílio que ultrapassa décadas e faz do canal um lugar especial até para pesquisadores. Ali, garantem os biólogos, é um dos poucos lugares no mundo onde a pesca é colaborativa.
É o boto quem cerca as tainhas e indica o cardume aos amigos na faixa de areia. Os pescadores ficam imóveis à espera da hora exata de tarrafear. João Quadros, 60 anos, tarrafeiro há mais de duas décadas, é um deles. Quase não respira até surgir um boto. São segundos de tensão, que mais parecem horas. Quando um dos botos salta na água e aponta para um dos lados, os tarrafeiros correm na direção dele e jogam, quase simultaneamente, as redes.
- Esse fenômeno foi registrado poucas vezes no mundo. O ritual da colaboração entre golfinho (boto, como é chamado no Sul) e pescador na busca pelo alimento só existe no Sul do Brasil, em Tramandaí e em Laguna (Santa Catarina), e na costa oeste da África, na Mauritânia - garante o professor do departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Ufrgs, Ignacio Moreno, e participante do projeto Botos da Barra, realizado pelo Centro de Estudos Costeiros Limnológicos e Marinhos da Ufrgs (Ceclimar).
Apelidos
O apontamento do professor é confirmado nas tarrafeadas certeiras do pescador Maurino Ramos Francisco, 50 anos. Na lida há quatro décadas, Maurino reconhece cada boto que entra na Barra. Os chama pelos apelidos dados pelos frequentadores, reconhece cada movimento dos animais, sofre junto quando um deles adoece ou morre e tem comunicação própria com os botos.
- Sem os botos, o pescador não é nada. Quando ele sente uma tainha, mostra e dá de bico. Ou ele aponta pra cima e para baixo, mostrando o lado da barriga para nós. A gente sabe que é o peixe que ele está mostrando ali porque ele está virando de lado. Quando a água é quente, a tainha vai sempre na frente do boto. Quando a água é fria, vai atrás do boto porque ele pula sempre para comer - ensina.
A intimidade é tanta, que Maurino os identifica até mesmo a quilômetros de distância. Em janeiro deste ano, o pescador estava em São José do Norte _ ao Sul do Estado, a 328km de Tramandaí _ quando viu Geraldona, uma fêmea que frequenta Tramandaí desde o início da década de 1990, junto a um filhote.
- Ela respirava de ladinho, ensinando o filho a nadar na costa. A reconheci pela "galhinha" (nadadeira) apodrecida (a nadadeira dorsal de Geraldona foi cortada por uma linha de pesca e não tem ponta). Em março, eles apareceram por aqui. Eles sempre voltam - conta, entusiasmado.
Maurino e a tarrafa companheira
Parceria que dá certo
Conhecido como o "amigo dos botos", Maurino já chegou a pegar 173 tainhas num único dia - em tarrafeadas indicadas pelos parceiros da água.
A lida diária, no verão e no inverno, leva à exaustão. Começa por volta das 5h30min e vai até as 14h. Mas é quando os botos visitam o estuário, com mais frequência entre abril e dezembro, que o pescador enche a tarrafa.
- Há dias em que jogo 30 vezes. Há outros, que são 500. Já abri pulso, machuquei joelho e tenho problemas na coluna, mas não consigo largar. Aprendi com o meu falecido pai, seu Dolário, a amar esta função. Mas não quero isso para os meus filhos (ele tem três, com idades entre 12 e 28 anos e que não exercem a função).
A pescadora Maria da Rosa Gonçalves, 49 anos, também cresceu nas margens da Barra acompanhando o movimento dos botos. Ao contrário de Marino, ela aproveita o período da tarde para compartilhar a função com os animais.
Numa única tarde, quando a temperatura não passava de 10ºC, por volta das 17h, Maria não demonstrava frio ao ficar paralisada com água até a cintura, à espera da indicação dos parceiros. Bastou um único movimento do filhote de Geraldona, que ainda não ganhou nome, para ela tirar dez tainhas em duas tarrafeadas.
- Vou vender três delas por R$ 20. Sem os nossos amigos, não somos ninguém por aqui - garantiu, enquanto se dirigia para o balde que já tinha outros peixes pescados naquela tarde.
Olhar atento aos botos
Turismo e poluição atrapalham a região
Com a experiência de quem acompanha a família de botos há anos, Maurino sabe os melhores meses de pesca colaborativa - entre março e junho e entre setembro e dezembro. E a explicação, além de ter mais tainha neste período, está na diminuição do número de turistas na região. Segundo o professor Moreno, atividades que geram impacto na área, como jet-ski, lanchas de recreação, banhistas e kit-surf, impedem a entrada dos animais na Barra.
- O turismo náutico acaba prejudicando o trabalho dos pescadores e afasta os animais daqui - reforça Maurino, apoiado por outros colegas.
Outro problema recorrente na região é a poluição. Parte de Tramandaí e de Imbé não tem saneamento básico. Os dejetos são despejados direto nas lagoas e chegam ao estuário.
- Estudos comprovam que botos da Barra foram acometidos por doenças fortemente ligadas à qualidade ambiental, como a lobomicose. Ela é uma infecção cutânea causada por um fungo - explica o professor Moreno.
A lobomicose foi responsável pela morte do boto mais querido pelos pescadores da região, e melhor amigo de Maurino. Em 2005, Lobisomem morreu nos braços do pescador, às margens da Barra.
- Ele me olhava e apontava onde estava a tainha. Era brincalhão, fazia a alegria da gente e dos turistas. Na manhã da morte, percebi que ele estava respirando fraco e nadava devagar. Até parar de nadar. O encontrei nas margens e o peguei. Ele deu o último suspiro nos meus braços. Foi triste demais - recorda, com os olhos marejados, Maurino.
Botos nadam próximos aos pescadores
Tradição que deve ser mantida
Maurício Tavares, biólogo do Ceclimar, explica que a área é como uma escola para os filhotes. Ele destaca que, ao contrário do que ocorre em Laguna e na Mauritânia, onde os botos moram no estuário, em Tramandaí eles vivem no mar e apenas visitam a Barra em determinados horários. Geralmente, aparecem entre 8h e meio-dia e entre 16h e 18h:
Tarrafa certeira
- São como uma família. Os mais velhos transmitem conhecimento para as outras gerações, que mantém a tradição de interação. Isso não é comum no mundo.
Na tentativa de fortalecer a pesca colaborativa na região, um grupo de pesquisadores do Ceclimar iniciou o Projeto Botos da Barra. O objetivo é promover estudos aprofundados sobre a técnica única e divulgar o conhecimento para a população em geral.
- Essa interação possui importância econômica e social para a comunidade. Ao confirmarmos este fenômeno, estaremos garantindo o sustento de dezenas de famílias e a preservação de um importante ecossistema e da importante interação socioambiental que não ocorre desta forma em outro lugar do mundo - afirma o professor Moreno.
Os botos mais antigos
* Bagrinho: tem uma pequena mancha de 3cm na nadadeira dorsal
* Coquinho: a nadadeira dorsal é redonda
* Geraldona: a nadadeira dorsal foi cortada e não tem ponta
* Catatau: nadadeira cortada em forma de bico
* Chiquinho: tem uma cicatriz de um corte de tarrafa
* Riscadinho: tem cortes na nadadeira dorsal causados por linhas de pesca
Saiba mais
* A pesca colaborativa em Tramandaí é relatada pelos pescadores há, pelo menos, três gerações.
* A espécie de golfinhos existente na Barra é Tursiops truncatus.
* Há registros de pesca colaborativa com outras duas espécies de golfinhos em Myanmar e na Índia.
* Em Tramandaí, o filhote acompanha a mãe em seus primeiros meses de vida. Ele participa e aprende diferentes comportamentos, como a busca pelo alimento. Isso inclui a pesca de tarrafa.
* Dados preliminares do projeto Botos da Barra indicam que existam 15 animais entrando na barra. Nem todos com o mesmo grau de ocorrência.
* O projeto Botos da Barra é realizado pelo Ceclimar, patrocinado pela Petrobras, e tem apoio do Instituto Federal Campus Restinga, das prefeituras de Tramandaí e de Imbé, do Sindicato dos Pescadores de Tramandaí e da Marinha do Brasil.
Fonte: Ceclimar/UFRGS