O próximo presidente argentino, seja qual for, terá de ser o homem e suas circunstâncias, como dizia o filósofo José Ortega y Gasset. De um lado, um peronista conservador, Daniel Scioli, representando o governo. De outro, um conservador de corte liberal, o oposicionista Mauricio Macri. É provável que esse conservadorismo se sobressaia como uma necessidade no momento em que o mundo vive uma crise e a Argentina está na iminência de dias amargos que se desenham a partir da ausência de moeda forte nos cofres públicos.
O favorito na eleição deste domingo é Mauricio Macri. Todos os institutos de pesquisa dizem que ele terá cerca de 10 pontos de vantagem. Nos últimos dias, os aliados de Scioli jogaram pesado. O oposicionista não caiu na provocação. Adotou a antiga estratégia de se recolher para evitar exposição negativa, que mexa em um quadro favorável aos seus interesses.
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O cientista político Julio Burdman reconhece a vantagem de Macri, mas, para sustentar o pedido de cautela, lembra um dado histórico: a Argentina nunca teve debates eleitorais para a disputa presidencial, e também jamais teve segundo turno. O que sairá das urnas na noite deste domingo ainda pode surpreender.
- O favoritismo não é tão forte. A Argentina não tem experiência com segundo turno. Creio que é importante ter cuidado com qualquer análise precipitada. O debate não permitiu trocas de provocações. Cada um falou mais do que já se sabe sobre ele próprio, falou para seu público cativo - alerta Burdman.
Ao analisar a campanha eleitoral, o cientista político fala no futuro:
- A mudança será grande também porque é outro país que surge. As necessidades são outras. Macri e Scioli têm agendas diferentes, porque têm compromissos diferentes. Exportadores e o setor rural estão com Scioli em peso.
Combate ao desemprego e à inflação são prioridade
Ao mesmo tempo, os dois são amigos e têm afinidades políticas e pessoais - ambos são mais afeitos ao diálogo do que a presidente Cristina Kirchner e seu marido Néstor, que fizeram 12 anos de governo centralizador, amparado em sólida maioria legislativa.
Outros analistas, como Rosendo Fraga, já dão praticamente como certo que Macri será o novo presidente argentino. Esse raciocínio coincide com as iniciativas que vêm se ensaiando nas duas chapas. Tanto Macri quanto Scioli têm falado, como primeira medida doméstica, em reunir empresários e sindicalistas para o estabelecimento de um grande pacto nacional. As palavras de ordem são combate à inflação e ao desemprego.
A situação é a seguinte: queda nas exportações, falta de investimentos, déficit fiscal em 6% do PIB e inflação na fronteira dos 30%. E esses dados provocam temores. Na memória dos argentinos, estão situações em que a inflação chegou aos 100% em um dia, 40 anos atrás. Em 1989, em meio ao mandato de Raúl Alfonsín (1983-89), a inflação anual atingiu 1.923%. Quando governistas e opositores pensam nessas duas situações, lembram que a primeira terminou em golpe e a segunda, em renúncia.
Diretor da Universidade de Buenos Aires (UBA), o economista Javier Lindenboim alerta para uma economia em frangalhos e o desemprego. Essa precariedade social, originária da crise econômica, leva outro especialista a um alerta ainda mais enfático.
O cientista político Andrés Malamud, argentino que leciona em Lisboa, ressalta outra questão histórica que arrepia os argentinos. Desde 1928, apenas presidentes peronistas completaram seus mandatos. Depois da ditadura, efetivamente, tanto Raúl Alfonsín quanto Fernando de la Rúa, da União Cívica Radical (UCR), tiveram de renunciar. A preocupação cresce de importância quando o favoritismo de Macri, em cuja aliança está a UCR, cresce paralelamente aos desafios e de forma inversamente proporcional à base parlamentar que o sustentará caso seja eleito - Macri terá de se sobressair como negociador, nos espaços público e privado. Por isso, mais ainda do que Scioli, o candidato oposicionista está preocupado em unir empresários em sindicalistas na mesa de negociações.
- Ganhar, ganha qualquer um. Mas só os peronistas terminam seus mandatos e os mandatos alheios - diz Malamud.
Caso Macri confirme o favoritismo, terá de seguir a seguinte receita elaborada por Malamud: abrir negociações pontuais com blocos parlamentares, dividir o peronismo para se aliar a parte dele e, claro, atrair deputados e senadores com recursos públicos para medidas de seus interesses. O analista lembra a fábula dos Três Porquinhos. O peronismo é o lobo, e vai soprar. Caberá a Macri, caso seja eleito, construir "uma casa de ladrilhos, e não de palhas".
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Semelhanças e diferenças
América Latina
Scioli - Em tese, é o candidato que chegaria para fortalecer o Mercosul e consolidar a Unasul. Tem o apoio de líderes como Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, o uruguaio Tabaré Vázquez, o boliviano Evo Morales, a chilena Michelle Bachelet, o cubano Raúl Castro e o equatoriano Rafael Correa.
Macri - Não é necessariamente anti-Mercosul. Talvez até ajude a fortalecê-lo, com um projeto mais pragmático e menos alinhado a teses que evitam, por exemplo, a aproximação com a União Europeia. Quer "descongelar" relações com EUA e Europa, incluindo a Grã-Bretanha. Se opõe à existência de presos políticos na Venezuela.
Câmbio
Scioli - Sugere a liberação progressiva da banda cambial, na medida em que se recupere o nível das reservas do Banco Central, atualmente em raquíticos US$ 26 bilhões. Fala em reduzir a inflação anual a um dígito.
Macri - Vai eliminar a banda cambial, o que levaria à desvalorização mais intensa do peso, mesmo que negue. Deve abrir mais a economia. Defende a liberação das importações e a eliminação das retenções sobre as exportações agrícolas, o que deve aproximá-lo do Brasil.
Programas sociais e de austeridade
Scioli - Entraria no governo comprometido sobretudo a conservar os programas sociais e os subsídios do kirchnerismo. Está alinhado à presidente e aos seus apoiadores ao falar em reconhecer as empresas estatais e até endossar o reajuste automático das aposentadorias.
Macri - Tem defendido a importância de medidas como o programa de auxílio às famílias. Também saiu em defesa de empresas estatizadas, como a YPF e a Aerolíneas Argentinas. Mas reduzirá o gasto público. Na sua mira, estão os subsídios aos serviços de água, gás e luz.
"Desafio de Macri será a governabilidade", diz analista político
Diretor do Centro de Estudos União para a Nova Maioria, Rosendo Fraga é um dos mais lúcidos e antigos analistas da política argentina, tomando sempre como parâmetro a história, a economia e os impactos sociais dos jogos de poder.
A vantagem de Mauricio Macri se transformará em vitória neste domingo?
O debate entre os dois candidatos (uma semana atrás) presidenciais foi um passo importante no aspecto institucional, mas não altera a tendência eleitoral favorável a Macri desde a votação do primeiro turno. O segundo turno presidencial é o primeiro que ocorre na Argentina. Ao mesmo tempo, foi a primeira vez que se realizou um debate desse tipo. A audiência superou os 50 pontos na TV. Mas os dois candidatos aprofundaram suas estratégias sem modificá-las. Macri segue com o discurso de que é a verdadeira mudança. Scioli mantém uma campanha negativa, segundo a qual, caso ganhe o adversário, será realizada uma grande desvalorização monetária e um aumento de tarifas públicas, levando à redução do valor real dos salários. Mas essa estratégia o impede de se diferenciar do kirchnerismo, e conseguir se diferenciar seria uma condição essencial para vencer, já que é necessário atrair pessoas que votaram em candidatos opositores. Da dezena de pesquisas de que tomamos conhecimento, houve apenas uma exceção que deu a vitória para Scioli. E foi a realizada pela Universidade Nacional de San Martín, que chamou publicamente seus professores e alunos a votar em Scioli. Todas as demais dão Macri como vencedor.
Mas as pesquisas não andam desacreditadas?
Apesar de nas últimas eleições elas terem se mostrado instrumentos limitados, está clara a percepção generalizada, até mesmo dentro do governo, de que Macri vencerá.
Essa agressividade pode sinalizar um tipo de atuação oposicionista ao mandato de Macri?
Restando-lhe menos de um mês de governo, o kirchnerismo segue tentando deter poder e antecipa uma dura oposição ao próximo governo.
A presidente já convocou o Congresso para 25 de novembro e 2 de dezembro, para seguir aprovando seus projetos condicionando o futuro governo.
Como o senhor vê um futuro governo Macri?
Se chegar à presidência, Macri será o segundo engenheiro a ocupar o cargo. O outro foi o general Agustín P. Justo, que era engenheiro civil pela Universidade de Buenos Aires e governou entre 1932 e 1938. Justo promoveu o maior plano de obras públicas realizado até então. A analogia de Macri com Justo é muito clara, já que ele tentará fazer, nacionalmente, o que fez na cidade de Buenos Aires em seus oito anos de gestão, da qual o Metrobus é a obra mais relevante. Justo, além disso, construiu uma coalizão política bem-sucedida, integrada por três partidos. Se chamava "Concordância" e foi a última coalizão exitosa a governar a Argentina. O maior desafio para Macri será justamente o de gestar uma coalizão que permita manter a governabilidade.