Nem a crise apontada como uma das maiores da história do país tira a disposição de investir de Clovis Tramontina, presidente da empresa que leva seu sobrenome e está entre as 10 maiores do Estado, com receita anual de R$ 4 bilhões. Quando dificuldades federais e estaduais fechavam o horizonte dos negócios, a empresa de 104 anos anunciou a entrada no segmento de eletroportáteis, que, no início, serão importados.
Clovis admite que não é o melhor momento: a cotação do dólar quase duplicou desde a concepção do projeto. Diz que pensa no futuro e leva para os negócios o mesmo ânimo com que enfrenta há 35 anos - sem crises nos últimos 17 - a esclerose múltipla que o faz usar bengala, para deslocamentos curtos, ou cadeira de rodas, para os longos.
- A primeira coisa é não fazer como avestruz, se esconder e não ver que tem uma crise. Sou otimista, mas a crise existe. É preciso tentar driblar com as ferramentas possíveis - incita.
Leia outro trecho da entrevista
"Esta crise é a pior porque é a que estamos vivendo agora"
É mais do que discurso. Além de lançar produtos, faz promoções em parceria com revendedores e avisa que vai "resistir tudo o que der" para não fazer demissões. Ainda se deu ao trabalho de visitar um cliente na longínqua Papua Nova Guiné. Aproveitou para conhecer as atrações turísticas?
- Ficamos só um dia, em um hotel. Foi só para visitar o cliente (risos). Chegamos no sábado e saímos no domingo.
Neste trecho da entrevista, Tramontina fala sobre a presença da empresa em 120 países e sobre como ela vem resistindo diante da crise. Confira:
As vendas da Tramontina foram afetadas?
Sim, mas pela crise nacional. As pessoas têm medo de comprar, especialmente os produtos de maior valor, que precisam de financiamento. Nós sentimos, principalmente em agosto, uma queda na demanda que nos deixou preocupados. Havíamos projetado um crescimento importante para este ano, de 17%. Podem pensar que estamos fora da realidade, mas foi uma projeção feita com o cenário que se via no ano passado. Estamos sentindo que, se chegarmos a acompanhar a inflação, perto de 10% de aumento nas vendas, será um resultado importante. Ficaria praticamente empatado com o ano passado.
Não seria um mau resultado...
Exatamente, é o que quero dizer. A empresa que consegue se manter não desemprega. Não estamos ativando o terceiro turno e estamos usando entre 80% e 90% da capacidade. Agora, em alguns produtos, como a linha profissional, há queda de 50% nas vendas. Uma linha mais sofisticada de talheres, baixelas e panelas tem queda de 30%. Mas nem por isso estamos parados. Estamos lançando uma linha de eletroportáteis de valor premium, em parceria com a australiana Breville, para tentar mexer com o mercado. Se as classes C e D, nosso grande consumidor, estão mais afetadas, vamos tentar subir um pouco, para A e B, e buscar um novo segmento.
O lançamento neste momento foi coincidência?
Foi, esse projeto foi iniciado há dois anos, quando o dólar era outro, agora está o dobro daquele valor. Mas não vamos parar, porque nossa visão é de longo prazo.
Todos eletroportáteis são importados?
Sim, mas a ideia é passar a fabricar no Brasil. Fazendo uma analogia com nossa linha de lixeiras e coifas, quando começamos a vender, toda era importada, hoje toda é nacionalizada. Encontramos na Breville essa linha de produtos que têm design, tecnologia e a matéria-prima básica é aço inoxidável, que conhecemos bem. Num primeiro momento, vamos importar, depois vamos fabricar. Como eles têm participação importante na Europa e nos Estados Unidos, a ideia é que abram esse mercado para nós nesses países. Estamos lançando esses produtos em co-branding (dupla assinatura de marca), pela primeira vez na história de 104 anos da Tramontina. Nosso objetivo não é só fazer uma importação, é ampliar a linha de produtos.
Programa de índio - No Colégio Santa Rosa, aos 11 anos (terceiro da D para a E), gostava de matemática e festejava o Dia do Índio (Foto: Arquivo pessoal)
O aumento do dólar reduz a concorrência dos chineses, que incomodava a empresa?
O aumento do dólar é importante, inibe a importação. Existe um perigo, porque também vai gerar uma inflação, matérias-primas ficaram mais caras. O dólar também tem de ter um equilíbrio, não pode disparar porque inviabiliza uma série de coisas. Mas do ponto de vista da concorrência chinesa inibe a importação. Também nos estimula a exportar. Não estamos conseguindo exportar mais, mas a rentabilidade aumentou. Foi bom para compensar a rentabilidade que diminuiu no Brasil, porque com a crise estamos fazendo mais ações promocionais para manter a produção nas fábricas. Aproveitando o período "bro" - setembro, outubro, novembro e dezembro -, que para nós é a melhor época de vendas, lançamos um caderno de ofertas para os clientes com 50 itens de todas as linhas com preços especiais. Diminui a rentabilidade, mas melhora o fluxo, gira a máquina. É uma operação ganha-ganha, estamos pedindo aos fornecedores para repassar ao consumidor.
Com aumento de energia e outros custos, houve necessidade de reajustar os preços?
Sem dúvida. Tivemos de fazer quatro tabelas de preços neste ano em algumas fábricas, o que não acontecia há muito tempo. Tínhamos duas tabelas ao ano, uma no início e outra no final. Um desses casos foi a fábrica de plásticos, e outra a do aço inoxidável, que encareceu muito. Produtos em que a matéria-prima pesa muito, como as cubas de pia, subiram mais. E os importados, em que a influência do dólar é direta.
Qual foi o maior reajuste?
Em algumas linhas, chegou a 25% e 30% no ano, mas a maior parte ficou dentro da inflação.
Meio a meio - Com o vice-presidente Joselito Gusso, mais alto gestor da família Scomazzon, que tem 50% da Tramontina (Foto: Murillo Tinoco, Divulgação)
A Tramontina hoje está em 120 países. Em alguns, virou sinônimo de faca de churrasco...
É, isso acontece na Argentina.
Como esse caminho foi aberto?
Começou nos anos 1960. O seu Rui Scomazzon, sócio de meu pai, é um homem de visão e teve a ideia de começar a exportar. Em 1969, fizemos a primeira, para o Chile. Na época, o mercado interno era fechado, então se vendia tudo aqui, qualquer coisa. Para saber se era competitivo ou não, tinha de ir para o mercado externo. Era preciso ter preço para poder competir. E aí começou, e seu Rui sempre insistia com a gente para exportar, exportar, exportar. Depois, nos anos 1980, o Eduardo, filho do seu Rui, começa a etapa de internacionalização de nossas estruturas. A primeira unidade no Exterior foi nos Estados Unidos, para onde foi o Antônio Galafassi, falando um inglês fluente (risos). Ele sabia dizer Coke e McDonalds, então não passava fome. Mas conseguimos montar uma empresa, hoje temos duas, uma fábrica de panelas de alumínio com antiaderente e um operador logístico, porque monta peças, americaniza todos os produtos, todas as embalagens são desenvolvidas lá. Hoje temos em Porto Alegre um escritório central com o Joselito Gusso, nosso vice-presidente, que controla essa parte internacional. Estamos com 11 unidades no Exterior, uma indústria nos EUA e as demais são escritórios ou centros de distribuição. Estamos na África, que é um continente muito importante, com 1,1 bilhão de pessoas, onde tudo está por fazer. Colocamos um escritório em Joanesburgo e estamos começando a desenvolver uma participação maior naquele mercado. Claro que não é fácil.
Até porque os chineses também estão lá?
Mas nós somos muito mais próximos culturalmente deles do que os chineses. E dos lugares mais próximos, como Suape, em Recife, estamos a seis, sete horas de voo. Estamos fazendo coisas interessantes. Com apoio da Aiesec (rede global de jovens universitários e recém-graduados voltada a intercâmbios profissionais), estamos trazendo pessoas da África que ficam em casas dos funcionários. Durante o dia, eles trabalham na empresa, à noite ficam com as famílias, e voltam para seus países com a cultura da empresa, sendo pessoas locais.
E como a empresa se comportou quando o dólar não estava conveniente?
Nós nunca deixamos de exportar. É uma pena que não cresceu como gostaríamos, mas nunca deixamos de vender por causa do câmbio. O que aconteceu com a Argentina? Fechou, mas nós estamos lá. Porque um dia vai voltar. Nós não abandonamos a Argentina. Temos mais de 30 traders, pessoas das fábricas, jovens, que viajam constantemente para o Exterior. Cada mercado é visitado ao menos três vezes ao ano. Vou contar um episódio. Este ano, visitei Papua Nova Guiné...
Não foi para vender faca...
Deixa eu contar (risos). Esse cliente, Brian Bell, estava em um programa de incentivo que fizemos na Copa do Mundo. Jantei com ele em Brasília, tinha um jogo do Brasil lá, e disse a ele vou lhe visitar. Quando fizemos uma programação de viagem neste ano, eu disse quero ir a Papua Nova Guiné. Ficamos só um dia. Foi só para visitar o cliente (risos). Chegamos no sábado e saímos no domingo. Fui visitar o cliente e fui embora. É um ponto no meio do oceano, no outro lado do mundo, três horas de viagem de Sydney até lá. A maioria da população vive no mato, tem desemprego altíssimo. Mas esse cliente tem um home center espetacular, trabalha com 600, 700 itens da Tramontina, vende cadeira plástica, talheres, ferramentas. É visitado ao menos duas vezes ao ano.
Marca de família - Clovis, na foto com o pai, Ivo, de 86 anos, é a terceira geração do negócio que começou com canivetes (Foto: Arquivo pessoal)
Esse comportamento ajuda na retomada? Exportadores dizem que está difícil reconquistar o mercado.
Não perdemos clientes. O problema foi o fechamento do mercado na Argentina, aí tem de administrar.
Mas os outros estão respondendo?
Sim, mas não está crescendo como a gente imaginava. Devemos repetir o mesmo valor do ano passado em exportações.
Qual é o principal mercado?
Estados Unidos, vendemos cutelaria e panelas. Lá está bom.
Foi preciso cortar pessoal?
Até agora não, e vamos resistir tudo o que der. Preparar uma pessoa não é fácil. Vou dar um exemplo (pergunta a colaboradores quanto tempo têm de empresa e as respostas são oito, 24, 35 anos. Interrompe quando chega a Ricardo e explica aquele ali não vou contar porque é meu filho). As pessoas ficam muito tempo e fazem seu futuro na empresa. Muitos têm pai e mãe na Tramontina. Não podemos perder isso. Não dá para, simplesmente por uma dificuldade, começar a demitir. Fizemos flexibilização em linhas mais afetadas, mas não demitimos ninguém.
O senhor contou que há 10 anos tinha 63 robôs e 5 mil funcionários. E agora são 403 robôs e 7,5 mil funcionários. A robotização se intensificou?
Quase todas as fábricas têm robôs, e quando não, forçamos que tenha, para desenvolver a cultura da robótica. Um erro estratégico é dizer que o robô tira o emprego das pessoas. O robô não se autoliga. Quem programa um robô é um homem, e não alguém de salário mínimo, é um engenheiro, que tem outro padrão de salário. Fazem trabalhos repetitivos, de solda, mais perigosos, e ainda dão ritmo à linha de produção, são os colaborativos. E exigem padronização.
A gourmetização é aliada?
Tem tudo a ver com a gente. A casa é onde a Tramontina está, e as coisas mais importantes acontecem em casa. É onde a gente briga, onde a gente namora, e a cozinha é o ponto de encontro. Com as dificuldades, a violência, as pessoas estão ficando mais em casa, fazendo comida em casa. Isso faz com que queiram equipamentos melhores. Tem muitas casas equipadas com espaços gourmet, e isso para a Tramontina foi sensacional.
Durante essa crise, o senhor tem um desafio extra para administrar, que é seu estado de saúde. Com está hoje?
Isso dá fadiga... para os outros (risos). Levo numa boa. Muita gente se preocupa demais com o futuro. Ontem me disseram que a crise do ano que vem seria pior. Eu disse eu não tomo comprimido para a dor de cabeça de amanhã. Não resolve. Vamos resolver o agora. Minha saúde levo numa boa, viajo por tudo. Uma vez, estava caminhando mal no aeroporto, e uma pessoa me disse Clovis, por que você não usa uma cadeira de rodas?. Por que não? Peguei a cadeira de rodas, faço isso ainda hoje, quando a distância é longa. Uma coisa boa é que não tenho crises há 17 anos, depois que comecei a tomar Interferon. Me alimento bem, como de tudo, sou colorado, é uma alegria espetacular. Outra é a ACBF (Associação Carlos Barbosa de Futsal, o clube de futebol de salão que ajudou a transformar em campeão mundial). Sou muito positivo, nunca vejo o lado negativo.