No início da década de 1940, o vienense Stefan Zweig deixou a Áustria tomada pelo nazismo, refugiou-se no Brasil e cunhou a expressão que se tornaria célebre para designar nossa nação: "País do futuro". O mesmo Zweig, no verão de 1942, deprimido pelo que definiu como "longa noite" na sua Europa, tirou a própria vida, desesperançado.
A história de Zweig, que se tornara um dos maiores escritores do seu tempo após ter o primeiro texto publicado pelo editor Theodor Herzl em Viena, diz muito sobre o sentimento que tomava conta dos sírios Ghazwan al-Arab, um médico ortopedista de 35 anos, e Ahmad Kirouz, um farmacêutico de 33 anos, ao lamentar as imagens de conterrâneos que veem, pela TV e pela internet, em apuros na Europa.
Ao mesmo tempo, olham as ruas arborizadas que podem ser divisadas da janela do apartamento onde vivem em Porto Alegre. Não evitam o ar triste. Lamentam não poderem pôr os pés em Damasco e Aleppo, suas respectivas cidades na Síria natal.
Em meio a uma intensa crise política e socioeconômica, o Brasil já deu abrigo de 2.077 refugiados entre março de 2011 - começo da guerra civil síria - até agosto deste ano, conforme o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), vinculado ao Ministério da Justiça. São números superiores aos dos Estados Unidos (1.243) e até das nações que são portais de ingresso na Europa, a Grécia (1.275) e a Itália (2.005).
Al-Arab e Kirouz são o perfil dos refugiados sírios que têm chegado ao Brasil, 10 mil quilômetros distante do país no Oriente Médio. O Conare tem um levantamento segundo o qual 70,7% dos sírios refugiados são homens e 65% têm entre 18 e 39 anos. Pedro Dallari, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em direito internacional e em migrações, acrescenta que são pessoas de bom padrão aquisitivo e alto grau de escolaridade.
A vinda ao Brasil foi facilitada por resolução do Conare adotada em outubro de 2013, que desburocratiza a emissão de vistos para sírios e outros estrangeiros afetados pela guerra e dispostos a solicitar refúgio no país. Isso aumentou o número de chegadas e impactou no perfil do refugiado que chega ao Brasil, já que o Conare vem aprovando quase a totalidade das solicitações relacionadas à guerra na Síria.
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Em 2011, quando o conflito começou no país do Oriente Médio, apenas 16 cidadãos dessa nação viviam no Brasil como refugiados (13 já desde antes de a guerra ter início). O ano de 2014 é lapidar para a constatação desse crescimento. Foram 1.326 pedidos feitos por cidadãos sírios (aumento de quase 8.287% em relação ao início da guerra).
Antes de falar a respeito da sua situação em Porto Alegre, Kirouz discorre sobre a Síria. Diz que o Brasil é uma democracia étnica, mas lembra que foi lá, no seu país, que a humanidade se originou. Reclama do ditador Bashar al-Assad, que teria estabelecido diferenças onde antes havia convívio harmônico, e indica uma contradição: está convencido de que, hoje, o melhor é ter Al-Assad no poder, por exclusão.
- Foram seis meses de protestos pacíficos contra o governo e depois veio a guerra. Nos outros países da Primavera Árabe, tudo se resolveu. Por que lá não? Agora, ficamos nessa situação. Quem vai governar o país? O Isis (Estado Islâmico)? Claro que não. Melhor que fique quem está - conjectura.
Em 2001, Kirouz deixou os pais em Kafartkharim, localidade próxima de Aleppo e a apenas 13 quilômetros da fronteira com a Turquia. Foi para Cuba estudar farmácia. Não pôde voltar ao seu país depois da guerra e gostaria de trazer a família. O problema é que os pais - o pai tem 62 anos e a mãe, 56 - não pensam em deixar a cidade onde vivem. Seu irmão fugiu da Síria porque não queria servir no exército e "matar gente". Está na Suécia. Uma irmã se casou e foi para o Kuwait com o marido. A outra irmã estuda matemática em Aleppo. Um tio fugiu com os dois filhos para a Turquia. Subiram numa embarcação para tentar a sorte na Grécia. O barco naufragou. O primo Saad, um arquiteto de 24 anos, morreu. O primo Tala, 18 anos, sobreviveu com o pai e está na Turquia.
- Aqui, saio na rua, posso falar árabe e não sou discriminado. Mas me preocupo com o futuro. Tenho mestrado em farmácia, mas não consigo emprego, e minha situação é incerta. Para a Síria, não tenho como voltar enquanto continuar essa crise - diz Kirouz, que chegou ao Brasil em abril e terá a ajuda do Acnur (o braço para os refugiados das Nações Unidas) por apenas um ano.
Situação semelhante vive o amigo Al-Arab, que fora para Cuba em 1999. Com um agravante: está no Brasil desde novembro e também tem um ano de ajuda do Acnur. Enquanto espera para fazer a prova do Revalida (para validar seu diploma no Brasil), ele acumula livros de medicina pegos na biblioteca da UFRGS. Motivo: manter-se estudando e se adaptar aos vocábulos próprios do português na sua área.
- Tenho 14 anos de estudos. Fiz medicina geral, medicina familiar e ortopedia. Gostaria de trabalhar na minha área. Não quero jogar fora tanto tempo e esforço - diz Al-Arab, cuja família mora em Damasco.
Primos tentaram fugir e hoje são "desaparecidos"
A última vez que Al-Arab esteve na Síria foi em setembro de 2011. Depois, a guerra recrudesceu, e ele não pôde voltar. É o mais jovem de cinco irmãos e quatro irmãs. Comunica-se com eles diariamente pela internet - nas duas horas por dia em que ela funciona na capital síria. Demonstra angústia ao falar nos primos que tentaram ir para a Europa e dos quais jamais teve notícias. Define-os como "desaparecidos".
Al-Arab e Kirouz têm discursos semelhantes. Veem descaso e maquinação política. Pedem que a comunidade internacional pense nos refugiados, mas que se debruce também no problema que eles consideram essencial: resolver o que os levou a fugir. Devolver a estabilidade à Síria. E dizem que a solução dos sírios não está em ir para os países árabes vizinhos.
- É melhor a Europa, porque nos outros países árabes, como a Jordânia e o Líbano, abusam dos sírios. E a maioria fechou as fronteiras. A situação é muito difícil - diz Al-Arab.
A representante do Acnur em Porto Alegre, Karin Wapechowski, está empenhada em conseguir alguma ocupação para os dois sírios na área da saúde, mesmo que não seja especificamente na medicina ou na farmácia. Pelo menos por enquanto.
- A maior parte das propostas que chegam é de tarefas que não têm a ver com as habilitações deles. Eles têm o direito de não querer jogar fora o que estudaram, e a ajuda de custo que recebem é de um ano. São pessoas de alto nível e preparadas. É uma pena a situação que vivem - diz.
Yusuf (E), brasileiro, trouxe os sírios Husen e Othman para o interior gaúcho
Em Bagé, na construção civil
Khaled Othman, 43 anos, que era guia turístico em Damasco, e o técnico em construção civil Jehad Husen, 30, conseguiram há um mês a acolhida de Nasser Yusuf, 45, brasileiro filho de palestinos, em Bagé. Yusuf, que tem empresas nas áreas alimentícia, agropecuária e da construção civil, fez contato com amigos em São Paulo e trouxe os dois para trabalharem em obras. Husen chegara há quatro meses a São Paulo. Othman, há um ano. Ambos vêm de campos de refugiados no Líbano e seguiram para o Brasil depois de terem conseguido visto na embaixada brasileira. Conheciam-se em Damasco, mas nunca haviam conversado. Aqui, tornaram-se amigos.
- Quando começou o conflito na Síria, cheguei a enterrar cerca de 140 corpos, a maioria dentro das próprias casas. Fiquei dois anos em meio à guerra. Corri para a fronteira com o Líbano, onde fiquei um ano. Pretendo trazer minha família para cá. Lá, tudo é incerto. Se tu levas um tiro, não sabes de onde vem, se das forças do governo ou da oposição - diz Othman.
A história do ex-guia turístico é triste. Há três anos, o filho estava fazendo compras num supermercado atingido por míssil. O jovem morreu.
- Também perdi um irmão, um tio e uma sobrinha. Minha filha levou um tiro na cabeça e ficou ferida. Fui para o Líbano, então - conta.
Na Síria, Othman deixou suas duas mulheres e seis filhos. Evidentemente, tem momentos de nostalgia.
Solteiro, Husen amargou dois anos e meio na guerra síria, até 2013, e um ano em um campo de refugiados no Líbano. Metade de sua família está no campo de refugiados da fronteira entre Líbano e Síria. A outra metade está em Damasco, "levada pela sorte", conta.
- Estamos felizes aqui. Nem tem problema que não falamos português (o contato é intermediado por Yusuf). Todos nos tratam bem em Bagé. Nunca nos sentimos discriminados.
Yusuf atribui a adaptação dos dois sírios em Bagé ao fato de ser mais fácil viver em uma cidade pequena sem falar o idioma local. Também sustenta que o custo de vida é mais baixo do que em São Paulo, e isso ajuda na acolhida.
- O que fiz é uma gota no oceano. O Brasil é uma mãe do mundo, uma referência, civilizado, apesar dos problemas que temos. As pessoas convivem apesar das diferenças - diz ele.
São Paulo, concentração dos refugiados
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) classifica o Brasil como o mais receptivo país latino-americano aos sírios - e um dos principais no mundo, para pessoas de diversas origens. O Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) informa que há refugiados de 80 nacionalidades no país. Os sírios são em torno de um quarto do total, valor resultante da guerra que entra no quinto ano e que é classificada pelo alto comissário, Antonio Guterres, como "a pior crise humanitária da nossa era".
Os refugiados sírios que chegam ao Brasil são atendidos por organizações não governamentais, com o apoio do Acnur, do governo e do setor privado, que lhes ajudam com aluguel, telefone, remédios, roupas, trabalho e aulas de português. Os atendimentos se concentram mais em São Paulo.
O Acnur menciona uma professora que mora em Brasília e se dedica a fazer iguarias como baklawa (pastel folhado com nozes e mel), ma'amul (doce feito de massa ao leite recheado com tâmaras), namura (um tipo de bolo) e warbat bil eshta (pastel folhado). O marido, engenheiro civil que era funcionário público na Síria, as vende em shoppings brasilienses.
- Um dia, minha filha mais velha e eu estávamos no trânsito e ficamos presos no fogo cruzado. Minha outra menina viu nosso carro explodir na frente da nossa casa. Passou a ter insônia - diz o marido da quituteira.
Em 2013, na Síria, as filhas do casal já estavam sem escola, e ele desempregado. Quando soube que o Brasil facilitara a emissão de vistos, saíram de Damasco para Beirute, no Líbano, em busca da embaixada brasileira. Um mês depois, desembarcavam em São Paulo para uma escala, tendo Brasília como destino. As filhas têm três, 11 e 13 anos, dominam o português e frequentam escolas públicas.
Os sírios costumam evitar fotos e ter os nomes revelados. Temem pelos familiares que vivem no país. Relatam o quão próximo estiveram da morte. Lamentam a destruição de relíquias arquitetônicas e outras barbáries.
Outra síria aprendeu a falar português com o padre da Igreja Ortodoxa Síria Santa Maria, Gabriel Dahho, em São Paulo. Filha de uma família rica de
Aleppo, viu amigos assassinados e corpos mutilados. Tem pesadelos até hoje.
- Vivia com medo. Quando passava em frente a um carro estacionado, temia que tivesse bomba. Aí, consegui visto na embaixada brasileira no Líbano - afirma.
Um comerciante sírio de 29 anos que vive em São Paulo desde 2012 perdeu tudo o que tinha onde vivia, em Homs. Fugiu com a roupa do corpo. Relata que foi torturado em 2011, após participar de protesto contra o governo. Teve os olhos vendados, foi chicoteado, levou chutes e choques elétricos. As unhas de três dedos em cada mão lhes foram arrancadas.
A principal causa dos refúgios são violações de direitos humanos: 51,13%.