A água voltou a percorrer seu curso normal, mas a vida de dezenas de famílias atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul ainda não. Um mês depois das chuvaradas que levaram 26 municípios a terem situação de emergência reconhecida, ainda há quem lide com a umidade, a falta de móveis, os prejuízos contabilizados em cifras e o medo, despertado a qualquer sinal de mau tempo.
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Recursos federais prometidos à época da enxurrada ainda não chegaram às prefeituras, o que torna ainda mais difícil a recuperação das cidades.
Só nesta semana Manoel Queiróz, 56 anos, pôde voltar para casa, a alguns passos do Arroio Feijó, na Vila Americana, em Alvorada, região metropolitana de Porto Alegre. Uma casa da qual só sobrou chão, teto e paredes.
A televisão caiu na água, que subiu até cintura de Maria Terezinha, mulher de Queiróz. A geladeira e o fogão, presentes de Dia das Mães, não funcionam mais. Colchões mofaram, e um rato, daqueles grandes, de banhado, foi encontrado morto dentro do armário da cozinha. Sobre o piso de cimento, o palmo de barro que a água trouxe escondeu também carniça de peixe.
- Ficaram só o bujão de gás e a máquina de lavar roupa - lamenta o desempregado.
Com doações, as oito pessoas da família Queiróz agora montam mais uma vez um lar - que, na manhã de ontem, ainda era cerca de 20 metros quadrados úmidos e de cheiro forte.
Nos arredores, o caos também persiste. Restos de móveis e outras perdas ainda se amontoam pelas calçadas do município, até virarem foco de fogo e fumaça. Já que o entulho não é recolhido, moradores o queimam. Tirar de vista aquilo que se perdeu é uma forma de recomeçar.
Ajude os atingidos pelas chuvas na Região Metropolitana
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Nas contas de Luiz dos Santos Fagundes, 38 anos, morador do bairro Vila Ezequiel, em Esteio, a enchente do último mês foi a décima que enfrentou. Recomeçar, portanto, é uma tarefa que já conhece bem - ainda que não seja possível acostumar-se a ela.
Dono de um minimercado na Rua Guido Possamai, Fagundes viu mais uma vez parte de seus produtos saírem boiando porta afora. A enchente chegou na terceira prateleira das gôndolas, a mais de 1,5 metro do chão.
- O sufoco que passamos só não foi maior porque vários fornecedores se solidarizaram e estão nos dando descontos e trocando itens que molharam - conta Adriana Roncaglio, mulher do comerciante.
Imóveis ficam desvalorizados
A experiência com inundações levou o casal a criar técnicas de prevenção. Por mais que mantenham andaimes nos fundos do estabelecimento, preparados para erguer as mercadorias em épocas de cheia, o dinheiro que a água arranca-lhes do bolso não é pouco. No último episódio, foram R$ 10 mil, calcula Fagundes.
- Não é qualquer coisa que me derruba, mas se achar um outro lugar para viver e abrir meu comércio, saio daqui. Só neste mês, 15 clientes meus já fizeram isso. Boa parte de quem morava de aluguel nessa região já foi embora - diz o comerciante.
Era o que também faria Felipe Soares, 25 anos: abandonar a alagadiça Vila Ezequiel. Só que a casa dos pais é própria - e perde seu valor a cada enchente, quando a água chega na altura do peito, comprometendo tudo o que está dentro.
- Os terrenos aqui estão a preço de banana. Se quisesse sair daqui, venderia a casa e com o dinheiro não compraria nada em outro canto da cidade. Aí é assim: aprender a conviver com o medo toda vez que se ouve alguém falar em chuva - conforma-se Felipe.
Prefeituras esperam liberação de recursos
Não há mais famílias fora de casa, diz a Defesa Civil do Estado. No entanto, possivelmente, muitas delas teriam de deixar seus lares mais uma vez em caso de chuva excessiva. Isso porque, mais de 30 dias depois dos primeiros alagamentos, pouco foi feito. Os gastos, desde então, concentraram-se na reestruturação dos municípios (recolhimento do lixo, limpeza na rede de drenagem e assistência às famílias atingidas). No que diz respeito à prevenção, ainda falta muito.
Além disso, de acordo com o Ministério da Integração Nacional, até agora, somente duas prefeituras apresentaram planos de trabalho solicitando recursos da União. A pasta autorizou os repasses de R$ 98,4 mil para Esteio, onde mais de 2 mil residências tiveram de ser abandonadas, e de R$ 172,1 mil para Alvorada, que contabilizou 3 mil famílias desalojadas - mas, até as 18h de ontem, nem sinal do dinheiro nos cofres municipais.
Em Alvorada, de acordo com o prefeito Sergio Bertoldi, o Professor Serginho (PT), o gasto na recuperação de buracos nas ruas, desentupimento da rede de esgoto e coleta de entulho já chega a R$ 4 milhões.
- Para se dar destino correto a cada 15 mil metros cúbicos de material descartado, entulho e lixo deixado após a enchente, a prefeitura arca com cerca de R$ 1 milhão - exemplifica.
O impacto, ainda que aos trancos e barrancos, é amenizado. Mas a solução para o problema na cidade ainda é distante. A construção do dique no Arroio Feijó, tida como a única salvação, ainda está na fase de estudos de impacto ambiental. O investimento na obra, que terá 21 quilômetros de extensão, deve superar R$ 220 milhões - recursos do governo federal, via PAC da Prevenção de Inundações.
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Em Esteio, a prefeitura informa que está realizando obras emergenciais para minimizar o efeito de próximas chuvas, previstas para setembro. De acordo com a secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação do município, Joceane Gasparetto, 23 famílias serão reassentadas para áreas mais seguras, e equipes trabalham na dragagem no Arroio Sapucaia. Os esforços já resultaram em gastos superiores a R$ 1 milhão.
- Temos ainda a obra do dique (no Arroio Sapucaia), que está em pleno andamento. Nesta enchente, foi possível avaliar que consegue comportar bem um volume de até 108mm, ainda não estando pronto. Só que o acumulado de chuva foi de 360 mm. Aí, não temos obra que dê conta disso - pondera Joceane.
Esperança contra cheias
Obras que poderiam evitar cheias ainda não estão prontas:
Dique em Alvorada
A construção de um sistema de contenção, estimado em R$ 228 milhões, poderá amenizar as enchentes em Alvorada. A obra deve incluir diques em pontos estratégicos, como no Arroio Feijó, além de outras formas de proteção para barrar o Arroio Águas Belas e a várzea do Rio Gravataí. O projeto está em fase de avaliação do impacto ambiental, processo que deve se estender até dezembro. O financiamento da obra já foi prometido pelo governo federal.
Reservatórios em Esteio
A conclusão da obra do dique do Arroio Sapucaia poderá conter alagamentos. Falta a construção de reservatórios que evitem o transbordamento dos arroios Alvorada e Guajuviras. Uma negociação envolvendo diferentes municípios da Região Metropolitana definiu que as bacias deverão ficar em Canoas. Agora, resta conseguir o dinheiro: as prefeituras e o Estado pediram ao governo federal para realocar recursos do PAC. O custo é estimado em R$ 136 milhões.