Dan Mitrione (de branco) ficou conhecido como o especialista que amplificou os métodos de tortura contra prisioneiros políticos na América do Sul
Segurando uma maleta de couro, um senhor de cabelos grisalhos diminui o passo para observar a placa recém-instalada na calçada em frente ao Palácio da Polícia, em Porto Alegre. Ele lê atentamente os dizeres indicando que, no segundo andar daquele prédio, funcionou, entre 1964 e 1982, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a temida repartição da Polícia Civil encarregada de controlar a oposição ao regime militar. No local, estima-se que pelo menos 10 pessoas foram assassinadas e cerca mil opositores da ditadura foram presos e torturados.
- Acho isso (a placa) um absurdo - disse o homem, que não quis revelar o nome.
Logo, ele explicou as razões de estar inconformado com a iniciativa do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) e da prefeitura de Porto Alegre, que integra o projeto Marcas da Memória. Médico, com 78 anos, fez parte da engrenagem que prendeu, torturou e matou. Nos tempos de Dops, o profissional recém-formado chegou inclusive a atender pessoas que foram torturadas no local. O médico, que não quis dar mais detalhes sobre sua atuação, preferiu economizar palavras quando questionado sobre tortura:
- Era o contexto da época.
Na quarta-feira, quando discursou na cerimônia de inauguração da placa, o advogado João Carlos Bona Garcia, ex-preso político, lembrou que médicos costumavam acompanhar as sessões de tortura, com o objetivo de garantir a sobrevivência dos opositores do regime.
- Teve um dia que fui terrivelmente torturado pelo major Átila (Rohrsetzer, do Centro de Informações do Exército). Levei tanto choque que desmaiei e acordei com um médico me cutucando com sapato de bico fino. Então, ele disse: "pode continuar que o guri é forte" - contou Bona Garcia, que ficou preso quase três meses no Dops.
Instalada na quarta-feira, 1° de abril, para marcar os 51 anos do golpe civil-militar, a placa é a terceira do projeto Marcas da Memória. As outras foram fixadas, também na Capital, na praça Raul Pilla, onde funcionou a sede da Polícia do Exército, e no prédio do Colégio Paulo da Gama, cujas salas de aula serviram de celas para cerca de 80 brigadianos que se opuseram ao regime militar.
De acordo com o presidente do MJDH, Jair Krischke, a meta é identificar 17 locais em Porto Alegre que serviram como prisões ou centros tortura e de detenção de pessoas durante a ditadura. Krischke lembra que o Rio Grande do Sul é um dos Estados com o maior número de locais de repressão: foram 39 no total, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade .
- O foco do projeto é o resgate da memória, se visa a consolidação do processo de democratização. Por ignorarem o que aconteceu, vimos nas manifestações recentes algumas pessoas pedindo a volta dos militares. É preciso lembrar que o custo pago pelos brasileiros foi altíssimo.
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Agente norte-americano ministrou cursos no local
"A dor exata, no lugar exato, na quantidade exata para obter o resultado desejado." A frase, que seria um dos ensinamentos do policial norte-americano Dan Mitrione, também ilustra a placa instalada na calçada em frente ao Palácio da Polícia, em Porto Alegre. Daniel Anthony Mitrione - o especialista que amplificou os métodos de tortura contra prisioneiros políticos na América do Sul - esteve na Capital em janeiro e junho de 1964. A visita secreta do agente do governo dos Estados Unidos, que acabou sendo assassinado por guerrilheiros tupamaros, no Uruguai, em 1970, foi tema de uma reportagem de Zero Hora em fevereiro de 2012.
Os cursos ministrados por Mitrione eram parte de um programa mais amplo dos EUA para modernizar a polícia gaúcha. A primeira visita a Porto Alegre ocorreu entre 21 de janeiro a 1º de fevereiro de 1964, quando o agente ministrou um curso de 30 horas intitulado "Supervisão e operações de patrulhamento". O policial retornou no mesmo ano, dois meses após o golpe que derrubou o presidente João Goulart, para um curso de 25 horas sobre "Técnica de patrulhamento", entre os dias 19 e 26 de junho.
Antes de partir, Dan Mitrione, então com 44 anos, posou para uma foto, nas escadarias do Palácio da Polícia, a oito passos de onde hoje está a placa do projeto Marcas da Memória. Entre os 11 integrantes da imagem, que se protegiam do frio com echaroes e sobretudos, estavam o chefe da Polícia Civil, Leo Guedes Etchegoyen (depois general de Exército), delegados, oficiais da Brigada Militar e fiscal da Guarda Civil.
* Zero Hora