A crise nas finanças públicas do Rio Grande do Sul chegou à beira do abismo. Anunciada na última sexta-feira, a decisão do Palácio Piratini de atrasar o pagamento de uma parcela da dívida com a União é mais um passo em um declive que começou a despontar há quatro décadas e que agora ameaça engolir o Estado.
Ano após ano, com raras exceções, o Tesouro registrou gastos superiores à capacidade de arrecadação. O saldo negativo se acumulou, e o endividamento também. Desde então, pesam na contabilidade combalida do Estado mais de R$ 50 bilhões em débitos com o governo federal, que consomem 13% da receita estadual todo mês, além de outros passivos a perder de vista. Entre eles, R$ 8 bilhões devidos em uma pilha de precatórios (dívidas do Estado reconhecidas judicialmente) que se arrasta e R$ 7 bilhões em déficit anual na previdência.
A situação se complicou, na avaliação do economista Liderau dos Santos Marques, da Fundação de Economia e Estatística (FEE), nos últimos quatro anos.
- O quadro não seria tão dramático se o governo Tarso Genro tivesse adotado uma política fiscal séria. Ele não se preocupou com o superávit primário (espécie de poupança para pagar os juros da dívida), e as finanças ficaram completamente comprometidas - afirma Marques.
Vídeo: Entenda como o Estado chegou ao limite
Embora reconheça que a gestão petista não priorizou o equilíbrio fiscal, como fez Yeda Crusius (PSDB), o economista Carlos Paiva, da FEE, não vê motivos para criticar Tarso:
- Cortar gastos não resolveria a crise financeira. A questão é outra: os Estados têm estruturas e problemas distintos e não podem mais ser tratados da mesma maneira pelo governo federal. É isso o que precisa mudar.
Defensores da gestão petista, como o ex-secretário da Fazenda Odir Tonollier, também sustentam que Tarso agiu corretamente ao aumentar as aplicações em saúde, por exemplo.
Só que, para isso, fez saques nos depósitos judiciais (dinheiro de terceiros em litígio na Justiça) até o limite permitido por lei, deixando o sucessor José Ivo Sartori (PMDB) sem essa alternativa. Para não atrasar o pagamento de fornecedores ou a folha do funcionalismo, Sartori optou por enfrentar a União - e, de certa forma, repetiu os passos do ex-governador Olívio Dutra (PT), no fim dos anos de 1990.
A medida drástica do Piratini tem a simpatia de pesquisadores como Alfredo Meneghetti Neto, da PUCRS e da FEE, que defende o fim das isenções fiscais para empresas como forma de escapar da crise e fugir do buraco.
- O Estado tem deixado de receber 36% do que deveria em ICMS. É o quarto em desonerações no país. Está na hora de repensar essa condição para ampliar a capacidade de arrecadação - sugere Meneghetti.
Balanço de um Estado com histórico de déficit
No vermelho
Entre 1971 e 2014, o Estado gastou mais do que arrecadou ao longo de 37 anos. O momento de maior gravidade se deu na década de 1980, mas a projeção de déficit para 2015 não fica longe
Década perdida
Em 1985, no governo Jair Soares (PDS, atual PP), as despesas superaram as receitas em R$ 6,55 bilhões (em valores atualizados) - pior resultado orçamentário da série histórica.
O período foi marcado por profunda crise econômica, aumento de gastos com pessoal e rolagem de dívidas antigas que geraram uma bola de neve.
As exceções
Nestes 44 anos, as contas estaduais só ficaram positivas em sete ocasiões
1978 - Synval Guazzelli
Fechou o ano com R$ 241 milhões em caixa, principalmente em razão de aplicações financeiras. Ainda não havia estourado a segunda crise do petróleo, que viria à tona no ano seguinte, provocando uma hecatombe nas contas.
1989 - Pedro Simon
Conseguiu saldo positivo de R$ 109 milhões. Os motivos foram a arrecadação de ICMS e as receitas financeiras provenientes da inflação alta (1.930,5% no ano), que tornaram o orçamento elástico.
1997 e 1998 - Antônio Britto
Os resultados orçamentários foram de R$ 2,16 bilhões, em 1997, e de R$ 1,41 bilhão, em 1998. Ocorreram, principalmente, em razão dos recursos gerados pelas privatizações.
2007, 2008 e 2009 - Yeda Crusius
Os resultados foram positivos em R$ 942 milhões, R$ 601 milhões e R$ 14 milhões. Motivos: venda de ações do Banrisul, crescimento da arrecadação e ajuste fiscal (aumento de receitas e contenção de despesas).
A rebelião de Olivio e Itamar contra a dívida
O atraso no pagamento da dívida com a União, anunciado pelo Palácio Piratini na sexta-feira, não é o primeiro gesto marcante que o Estado adota para avisar o Palácio do Planalto sobre as dificuldades em honrar o débito. Há 16 anos, a pendência com a União resultou em rebelião de governadores contra Brasília que teve o RS como um dos seus principais focos.
Logo depois de o então governador mineiro Itamar Franco (PMDB) declarar moratória de 90 dias, em janeiro de 1999, o governador Olívio Dutra (PT) anunciou que passaria a pagar as parcelas do débito com a União em juízo a fim de forçar uma renegociação. Mas o movimento, que contou com o apoio de sete Estados, não alterou o cenário de penúria das finanças públicas.
Itamar suspendeu os pagamentos ao governo federal após tomar posse. A medida teve ampla repercussão internacional: os títulos da dívida externa do país despencaram em Nova York, o real se desvalorizou, e a Bovespa recuou. O então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ex-ministro do próprio Itamar, chamou a decisão de "irresponsável".
No Rio Grande do Sul, que tinha obrigação de destinar 13% de sua receita para a União pelo acordo firmado no ano anterior, a medida adotada foi mais branda. O pagamento passou a ser feito em juízo enquanto as condições de quitação do débito seriam questionadas no Supremo Tribunal Federal (STF). A mobilização, que contou ainda com o apoio político de Mato Grosso do Sul, Amapá, Alagoas, Acre e Rio de Janeiro, trouxe minguados benefícios.
- A ideia era fazer pressão sobre o governo federal. Mas, no final das contas, reduzimos o corpo da dívida em apenas 1%. O problema é que há uma estrutura tributária de ponta cabeça, na qual quem tem mais paga menos, e a dívida pública segue como uma bola de neve - afirma Olívio.
Os sete governadores se reuniram em Porto Alegre e lançaram uma carta conjunta pedindo o desafogo de suas contas. Como resposta às ações de Olívio e Itamar, a União bloqueou repasses financeiros aos dois Estados e comunicou a situação a organismos internacionais. Por isso, o Banco Mundial chegou a suspender parcelas de empréstimos contraídos pelo RS.
Itamar anunciou o fim da moratória em setembro daquele ano, e Olívio assinou um acordo com FHC em abril do ano seguinte. Assim, o Piratini recuperou repasses de R$ 300 milhões - mas não conseguiu alterar o percentual de 13% da receita destinado a quitar um débito que parece cada vez mais impagável.
Dívida
Em 1998, a União assumiu as dívidas do Estado. Em troca, o RS se comprometeu a devolver, em valores da época, R$ 9,5 bilhões em 30 anos. Os juros e a correção transformaram o passivo em uma bola de neve. Hoje, a dívida passa de R$ 50 bilhões e está longe do fim. Só em 2015, o Estado será obrigado a pagar R$ 3,6 bilhões.
Folha
Ano após ano, a folha de pagamento do funcionalismo pesa cada vez mais nas contas estaduais. Em 2005, o custo chegou a R$ 8,5 bilhões. Dez anos depois, a previsão é de que passe de R$ 24,7 bilhões, sendo que uma fatia de 73,7% das receitas do Estado será comprometida por despesas com pessoal e encargos sociais.
Previdência
Até o fim do ano, o déficit previdenciário deve chegar a R$ 7 bilhões (há uma década, não passava de R$ 2,6 bilhões). Desde 2013, o número de inativos e pensionistas ultrapassa o de servidores em atividade. Em dezembro, os ativos eram 173,5 mil e os demais chegavam a 198,4 mil, diferença que tende a aumentar.
Precatórios
A dívida com precatórios (sentenças judiciais em que o Estado foi derrotado) bateu recorde. Entrou 2015 na casa dos R$ 8,15 bilhões, mais do que o dobro do valor orçado para a saúde. Ao todo, 11,8 mil novos casos estão inscritos e aguardam pagamento, aumento de quase 50% em relação a 2014.
Déficit
Se a previsão da Fazenda se confirmar, o Estado fechará 2015 com déficit (gasto maior do que a receita) de R$ 5,4 bilhões. As despesas devem ser 16,7% maiores do que a arrecadação. Isso inclui desde reajustes concedidos ao funcionalismo até pagamento de juros de R$ 1 bilhão pelo uso de depósitos judiciais.