O escritor Millôr Fernandes (1923-2012) costumava dizer que "os corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todos no Brasil". Será mesmo? Na última segunda-feira, a presidente Dilma Rousseff (PT) afirmou que "a corrupção não começou ontem. Ela é uma senhora idosa e não poupa ninguém". Não poupa ninguém mesmo?
Na última quarta-feira, a presidente anunciou o chamado "pacote anticorrupção" - conjunto de propostas elaboradas pelo Executivo para inibir e punir irregularidades na administração pública.
O pacote, que criminaliza a prática de Caixa 2, também prevê perda de bens; e torna o crime enriquecimento ilícito, entre outros. Mas vem com dois anos de atraso. A petista prometeu o pacote, pela primeira vez, em 2013, como uma resposta à onda de manifestações que tomou conta do país. Na campanha eleitoral do ano passado, ela reiterou a promessa, mas nada. A proposta é uma forma de atender às cobranças de parte da população aos escândalos de corrupção. Contudo, o pacote reúne projetos que já tramitam no Legislativo sobre o tema.
A revista MIX deste fim de semana faz uma provocação: o brasileiro tem, de fato, uma maior propensão à corrupção e a cometer mais pecados éticos?
No momento em que uma multidão volta a tomar as ruas do país com pedidos de moralização, cientistas políticos, escritores, filósofos, advogados, juristas, sociólogos e professores ajudam a entender as raízes deste problema que não é só brasileiro e também não está restrito à classe política.
Há quase que um senso comum de uma natural desonestidade do brasileiro, como se fosse parte de nosso DNA. Esse caráter duvidoso fica evidenciado quando, por exemplo, tentamos tirar vantagens, por menores que sejam, em situações do dia a dia. Contraditoriamente, as pessoas se mostram cansadas e desiludidas com as sucessivas notícias de malversação de recursos públicos, uso indevido da máquina administrativa, o clientelismo, a não separação entre o público e o privado.
Ao mesmo tempo em que as pessoas se chocam com os sucessivos escândalos de corrupção, há, e não são poucos, aqueles que veem como comum a prática cotidiana da corrupção. A expressão maior desse entendimento seria o famoso jeitinho brasileiro.
Enquanto você lê esse texto, faça uma reflexão e pense: por quantas vezes você, que esteve nos protestos de domingo passado ou nos de junho de 2013, deu passagem à corrupção em sua vida? O jeitinho e a malandragem seriam, então, condicionantes do caráter brasileiro?
Mas se somos assim há de se ter alguma explicação. Qual a origem desse desvio de conduta? Há quem diga que o nosso vício de origem seja o patrimonialismo, fruto de uma herança deixada pelos colonizadores portugueses. Afinal, o patrimonialismo nada mais é do que a falta de distinção entre o público e o privado. Então esse é um mal trazido além-mar ou, aqui, com o passar dos anos foi se aperfeiçoando em terras brasileiras? Esses questionamentos foram feitos aos especialistas e suas respostas são um convite à reflexão.
Em consonância, os especialistas falam que a corrupção, seja na esfera pública, privada ou no dia a dia, deve ser desfeita com a aplicação de exemplos positivos e construtivos que, ao menos, minimizem essa imagem de querer levar vantagem em tudo. Como dizia Millôr Fernandes "uma característica curiosa do corrupto se observa em restaurantes: o corrupto está sempre nas outras mesas".
"Não é a ocasião que faz o ladrão, esta apenas o revela"
O filósofo, professor universitário e um dos palestrantes mais requisitados do Brasil, Mário Sergio Cortella, falou com a revista MIX. Cortella é categórico ao dizer que o debate em torno da questão ética traz, em si, um pressuposto básico: a possibilidade de escolha, a possibilidade de opção. Recentemente, Cortella, escreveu com Clóvis de Barros Filho do livro Ética e Vergonha na Cara!, e ele chama a atenção para o nosso comportamento no dia a dia e, por consequência, os dilemas éticos pelos quais passamos:
- Ética não é cosmética! É "reflexão prévia" que dá sustentação à resposta pessoal e livre para as três grandes questões que devem anteceder qualquer ação: Quero? Devo? Posso? Há coisas que quero mas, não devo; outras, devo, mas não posso; outras ainda, posso, mas não quero. A decência está na escolha e no resultado. Por isso, por exemplo, não é a ocasião que faz o ladrão; esta apenas o revela, dado que a decisão de ser ladrão ou não é anterior à decisão.
Cortella, contudo, é otimista. Ele sustenta que o Brasil vive, no momento, o começo da limpeza e não o auge da sujeira e da corrupção. O que, na prática, mostra uma recusa dos brasileiros ao apodrecimento ético:
- Há milhares e milhares de pessoas que se defrontam com a ocasião para o malefício, mas recusam apodrecer a decência.
Corrupção não é algo made in Brazil
Sociólogo e professor da Unifra Guilherme Howes sustenta que a corrupção é, sim, um fato marcante na história do Brasil. Porém, a corrupção é um traço comum encontrado em todas as sociedades estudadas, pelos quatro cantos do globo, desde os tempos mais remotos até os dias de hoje. No entanto, a trajetória e a formação histórica do Brasil apontam que, aqui, o compadrio, a troca de favores, o "toma lá, dá cá" são práticas que marcam a construção de nossa identidade social - herança deixada pelo mundo ibérico. O sociólogo atenta para uma construção social, ao longo dos cinco séculos, que permite que sejamos tolerantes à corrupção.
A história brasileira, ao longo do tempo, é marcada por rupturas políticas. Howes cita, a efeito de comparação, os Estados Unidos que, em 1776, decretou que todos são iguais perante a lei. Há quase 240 anos, os vizinhos do Hemisfério Norte têm essa ideia de igualdade. Já, aqui, em 1888 (ano de abolição da escravatura) ainda se vendiam escravos negros em praça pública como se fossem bens, destaca o sociólogo. Mas foi apenas em 1988 que, ano da mais recente Constituição brasileira, estabeleceu-se que, de fato, todos somos iguais perante a lei.
O brasileiro ainda tem dificuldades em se ver como igual ao outro. Howes evoca a obra Carnavais, malandros e heróis, do antropólogo Roberto DaMatta, em que ficou conhecida a célebre frase de quem quer mostrar autoridade e poder: "Você sabe com quem está falando?".
No próximo mês, será realizado em Santa Maria o congresso internacional Brasil/Portugal: Ditadura, Transições e Democracias". A atividade será na UFSM, de 6 a 10 de abril e debaterá, entre outras questões, as rupturas políticas vivenciadas nos dois países.
Fome de ética
Entenda por que a corrupção está em nosso DNA
O brasileiro tem, de fato, maior propensão à corrupção e aos pecados éticos? Com a palavra, especialistas de renome no país e no Estado
Marcelo Martins
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