Primeiro, foi a Apple, símbolo da revolução digital planetária: anunciou que vai vender produtos em Cuba. Depois, a Coca-Cola cogitou fazer o mesmo. E o embargo econômico, que se mantém apesar dos avanços diplomáticos para o reatamento entre Havana e Washington? Ora, como manda o capitalismo, a política não resiste à tentação do mercado, e o mecanismo restritivo vai se tornando peça de museu, a ponto de até já se verem produtos dessas duas empresas pelas ruas de Havana, adquiridos em terceiros países.
Conhecido em Cuba como "el bloqueo", o embargo em relação a Cuba é interdição comercial e financeira estabelecida pelos EUA a Cuba no início dos anos 1960, quando Fidel Castro alardeou o caráter socialista da revolução de 1959. Trata-se de uma lei, e o presidente Barack Obama tenta convencer a oposição republicana, maioria no Congresso americano, a revogá-la.
- Algumas empresas já anunciaram que vão vender para Cuba. Não está claro como vão fazer isso. O fato é que o processo de abertura e de reaproximação as encoraja. Não digo que já fazem o embargo ruir, mas fazem pressão. O medo dessas empresas é o de perder a oportunidade de entrar logo em Cuba - diz Denilde Holzhacker, do núcleo de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Vídeo: por que o mercado define o futuro de Cuba
Até já surgem anedotas sobre Fidel e Raúl se comunicando por iPhone entre um e outro gole de Coca-Cola. São cenas que ilustram com certa picardia a retomada de relações, que passa por encontros entre autoridades dos dois países, com perspectiva de provocar a reabertura das embaixadas até abril.
O embargo tem suas brechas. Não impede completamente que os EUA negociem com a ilha. Neste início do século 21, houve autorizações para a exportação de alimentos americanos a Cuba. Sob a seguinte condição: o pagamento deveria ser realizado sempre à vista, e os produtos deveriam ser pagos antes que as embarcações saíssem dos portos americanos. Os EUA já são o sétimo exportador de produtos alimentícios para Cuba, levando-se em consideração a ajuda humanitária - mesmo com o embargo.
- O embargo é um problema interno dos EUA a ser superado. Mas a Apple e a Coca-Cola mostram que o dinamismo da economia quer o novo mercado, e a política dos republicanos pode não ter força para se opor a isso - prevê Analúcia Danilevicz Pereira, professora da UFRGS.
Quando fala em "problema interno", Analúcia toca em um ponto controverso. A ONU já condenou o embargo 23 vezes. É manifestação simbólica, mas um símbolo de peso. Ao mesmo tempo, a comunidade cubana em Miami, de forte representação eleitoral, resiste a aliviar o regime socialista.
- Os EUA demoraram muito para retomar as relações diplomáticas com Cuba. Enquanto isso, a China já se avançou e vende bastante para a ilha - acrescenta Analúcia, enfatizando que participar do processo de abertura cubana, no seu início, é uma vantagem, e não participar é comer poeira.
A pressão pelo fim do embargo não parte só da indústria. Parece haver um clamor, de dentro e de fora dos EUA. Na semana passada, 96 empresários americanos da área rural visitaram Havana e manifestaram seu apoio ao fim oficial do embargo. E isso mexe com o governo cubano, que gasta, anualmente, US$ 2 bilhões para importar alimentos.
O grupo era de peso não só por serem dezenas de empresários reunidos. Mas pela importância dos integrantes da comitiva. Diretora da multinacional Cargill, Devry Boughner disse durante a visita, da qual participou, em entrevista coletiva:
- Estamos aqui para lançar uma mensagem. Trabalhamos duro para pôr fim ao embargo e estamos esperançosos de que esse nosso intercâmbio dê resultados, entendimento e amizade com os cubanos.
Mesmo com o embargo, os EUA têm exportado principalmente frango e soja para a ilha, em mais uma demonstração de que as necessidades mercantis se sobrepõem às resistências políticas. O objetivo, agora, é vender mais arroz e trigo e, com isso, aumentar a participação nas importações cubanas. Atualmente, os produtos americanos são 6,6% das compras cubanas. Os agricultores querem chegar aos dois dígitos.
História de restrições
Em 17 de dezembro de 2014, houve o anúncio histórico: os presidentes cubano, Raúl Castro, e americano, Barack Obama, disseram que Cuba e EUA retomariam as relações diplomáticas após mais de 50 anos. O fim oficial do embargo, porém, dependeria do Congresso americano.
Os dois países não têm relações diplomáticas desde 1961, quando Cuba anunciou o caráter socialista da revolução. À época, vivia-se o calor da Guerra Fria, e Cuba era tentáculo soviético. O embargo se iniciou já em outubro de 1960, mas recrudesceu depois.
Até 1959, os EUA eram o país com quem Cuba mais comercializava. Depois, a URSS abocanhou 85% desse mercado. Em 1989, com o colapso soviético, Cuba perdeu esse apoio e passou a sentir com mais força o peso do embargo. A Venezuela chavista, com o petróleo em alta, ajudou a ilha. Mas o petróleo não está mais em alta.
O embargo impede a maioria das trocas comerciais. Por meio de duas leis, uma de 1992 (Lei Torricelli) e outra de 1996 (Lei Helms-Burton), Washington proíbe envio de alimentos ao país caribenho (com algumas exceções) e torna passível de punição judicial empresas nacionais e estrangeiras que tenham relações financeiras com a ilha.