Em um relatório de 41 páginas, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre denunciou, nesta sexta-feira, um episódio de violência contra moradores da Ocupação Mais Bela Vista, na Zona Norte. A Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana (Cedecondh) ouviu depoimentos e apontou policiais militares como autores de tortura. O documento, que pede providências a órgãos competentes, foi apresentado nesta manhã.
Na reconstituição feita pela comissão, com base em sete depoimentos, consta que "se tratou de uma ação truculenta, sem a observância de padrões mínimos de procedimentos legais e em dissonância com o princípio da integridade física e dos direitos humanos".
- O relatório é muito firme. Primeiro, na conceituação de que aconteceu lá um cerco, tortura e violência policial grave com ameaças de morte - afirma a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL), presidente da Cedecondh.
Conforme o relatório, jovens que ajudavam na montagem de casas da ocupação na Zona Norte foram surpreendidos pelo barulho de disparos de arma de fogo por volta das 23h do dia 19 de fevereiro e, em seguida, "se depararam com mais de 15 policiais fardados, metade com touca ninja, metade com o rosto descoberto". Os supostos policiais teriam ordenado que os jovens se ajoelhassem antes de começarem as agressões, com pedaços de árvores para dar as primeiras pauladas e sacos para colocar nas cabeças das vítimas.
- Bateu com o eucalipto. E chute e botava nós um em cima do outro, disse que ia dar um tiro só para não gastar, que nós não merecia bala. E... sanduíche, um em cima do outro e ia dali... E os saco na cabeça do pessoal - disse uma das testemunhas, que teve a identidade preservada no documento.
Também foi relatado que, se os jovens não saíssem da ocupação até as 18h do dia 20, os agressores "iam voltar, pegar um por um". Uma moradora informou ter a casa invadida e revistada por três policiais, além do carro de um dos líderes da comunidade ter sido depredado. Uma das testemunhas diz que as pessoas que chegavam na ocupação eram informadas de que havia pessoas mortas e que ninguém entraria até o fim da operação.
Em coletiva nesta sexta-feira, a vereadora comentou ter presenciado um dos fatos que estão no relatório. Na noite do dia 20, enquanto era feito exame de corpo de delito, um adolescente que teria presenciado a atuação dos agressores recebeu uma ligação - um líder comunitário que o acompanhava atendeu e relatou ter ouvido a pergunta "E aí ferrugem, tu ainda tá aí?". Ao responder que estavam fazendo o exame, o contato foi encerrado. Como o número ficou registrado no celular do adolescente, o advogado do grupo retornou a ligação, que foi atendida na 4ª Companhia do Batalhão de Operações Especiais (BOE).
- Está muito estranha a posição da Brigada Militar de fazer essas ações, inclusive de noite e de madrugada - relata um dos líderes do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana, que pediu para ter o nome preservado. - Há dois anos, aconteceu a morte de um menino, que é irmão deste que foi acuado e violentado. A gente está achando que existe uma ligação nesses dois casos - acrescenta.
Relatório será entregue a secretários estaduais
O relatório será entregue aos secretários estaduais da Segurança Pública, Wantuir Jacini, e da Justiça e dos Direitos Humanos, César Luís Faccioli, na semana que vem. Também será encaminhado ao Ministério Público e à Anistia Internacional.
Na Assembleia Legislativa, o tema será levado pelo deputado Pedro Ruas (PSOL), integrante da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, já que a suspeita recai sobre uma corporação do Estado.
- Ocorre de novo em Porto Alegre um fato historicamente repetido. A violência policial contra pobres. É sempre a mesma rotina, a repetição da tragédia. E a tragédia no sentido grego, aquilo que a gente sabe que será ruim e não tem como evitar - ressalta o parlamentar.
Entre as providências pedidas pela Cedecondh à Secretaria da Segurança Pública, estão identificação dos envolvidos, garantia de proteção às vítimas que deram depoimento e que a Brigada Militar instale GPS em suas viaturas e filme as ações. Ao governador José Ivo Sartori (PMDB), é solicitada a criação de um conselho para discussão das políticas de segurança, que seja determinado ao comandante-geral da BM que adote medidas para que PMs atuem com nome e patente visíveis e que seja criada a carreira de corregedoria externa unificando BM, Polícia Civil e Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Para o Ministério Público, foi pedido que exerça o controle externo da atividade policial.
O boletim de ocorrência foi registrado na 22ª Delegacia da Polícia Civil, e a apuração foi transferida para a 18ª. A Brigada Militar abriu inquérito para verificar a veracidade das queixas. O caso está sendo acompanhado pelas secretarias da Segurança Pública e da Justiça e dos Direitos Humanos.
CONTRAPONTO
Segundo o titular do Comando de Policiamento da Capital (CPC), que é responsável pelo caso, tenente-coronel Mario Yukio Ikeda, a Brigada Militar abriu um inquérito assim que ficou sabendo da denúncia. A investigação tem prazo de 40 dias, prorrogáveis por mais 20.
- Não confirmou nem não confirmo (que a polícia esteve na ocupação). Estamos apurando as circunstâncias - disse Ikeda no final da tarde desta sexta-feira.
Ainda conforme ele, o CPC ainda não recebeu o relatório da Câmara de Vereadores.
*Zero Hora