Há três meses na Rússia, onde cursa mestrado em relações internacionais na Universidade Federal de São Petersburgo, a brasileira Desirée Brandão acompanha com expectativa os desdobramentos da crise do rublo. Para a porto-alegrense, o momento é decisivo não apenas para os russos, mas para seus parceiros, entre os quais se encontra o Brasil:
- É o momento da verdade em que poderemos ver se o que começou com o Banco dos Brics, em 2014, poderá trazer resultados efetivos que ajudem no suporte da economia de seus membros quando necessário.
Enquanto tenta tranquilizar amigos preocupados com o noticiário sobre a crise, Desirée pesa os efeitos das sanções e da desvalorização do russo e considera que os tempos à frente serão difíceis. A seguir, a íntegra da entrevista:
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Qual é o impacto da desvalorização do rublo no cotidiano dos russos?
Muitos russos estão pensando neste momento que mudanças no comportamento de consumo estão por vir. Desde a adoção das primeiras sanções pelo Ocidente, eles já vêm enfrentando algumas substituições de produtos e aumentos no preço de produtos importados, o que os fez mudar alguns de seus hábitos. Li diversas entrevistas onde os próprios russos falavam que ir ao supermercado estava mais caro. Em vez de duas sacolas, eles saíam com uma. Relatos de amigos russos, assim como minha própria experiência nessas últimas semanas, me permitem dizer que um clima diferente está no ar. Os preços de diversos produtos foram ajustados nos supermercados. Há relatos de demissões nas empresas. A maior loja de departamento, Ikea, congelou a venda de móveis de cozinha. A Apple fechou suas vendas online, imobiliárias pararam de vender e montadoras como a GM - segundo fontes diretas - pararam de produzir carros em função da instabilidade do rublo. Há rumores de que haverá aumento no valor do gás e incerteza sobre se o governo colocará limites para retirada de rublo e troca por dólar. Enfim, um cenário de instabilidade que levou muitos russos às lojas para comprar móveis, carros ou outros bens de longa duração antes do final do ano. Lojas e supermercados já restringem o uso de cartões de crédito e reajustaram os preços (principalmente os supermercados), alguns caixas eletrônicos estão sem dólares e venho recebendo relatos de furtos a estrangeiros. Desde que cheguei aqui, venho me sentindo 100% mais segura que no Brasil. Nessas duas últimas semanas, contudo, a atenção redobrou. Um amigo boliviano foi abordado na rua e, quando depois de ser roubado, ouviu o seguinte: "'Vocês' (estrangeiros) precisam nos 'ajudar' agora que o rublo vai mal". Reforçando esse sentimento de instabilidade estão os rumores de que preços aumentarão depois do Ano-Novo.
As vendas do comércio caíram?
Indo às lojas você vê pessoas comprando muitas coisas, no entanto não há como saber se isso era em razão das promoções de final de ano, pelo Natal, ou para aproveitar e comprar tudo que podem antes da virada do ano em um último ato desesperado antes dos grandes reajustes em janeiro. Alguns amigos russos, no entanto, me falaram que muitas pessoas estão realmente comprando bens de longa duração agora, como mobília e eletrodomésticos, para evitar a remarcação depois. Ao mesmo tempo, desde o discurso do presidente da Rússia, Vladimir Putin, em 18 de dezembro, ou pelas ações que paliativas que vem tomando desde então, parece que o mercado financeiro acalmou-se o que permitiu o rublo atingir uma maior estabilidade (no dia 26 alcançou sua maior marca em três semanas). E, depois do Natal, a imprensa russa parou de falar sobre o rublo. Apesar de não haver dado nenhuma solução, Putin foi claro e direto. Disse que os russos deverão se preparar para dois ou três anos de crise econômica e somente depois desse período as coisas melhorarão. Toda a Rússia parou para assistir a esse discurso. Claramente, todos vêm se preparando para tempos mais difíceis. Férias no exterior estão sendo canceladas. Por exemplo, Sochi, como resultado desses cancelamentos, recebeu uma procura tão grande para as férias de inverno nas últimas semanas que acabou tendo de restringir o número de pessoas permitidas dentro de certas áreas de esqui nos resorts (muitas pessoas que iriam viajar para o exterior mudaram seus planos). No entanto, ao falar com russos sobre suas percepções sobre a crise, noto que as respostas divergem.
Qual é a atitude dos russos comuns diante da crise?
É importante destacar que, até a metade de dezembro, muitos russos não tinham noção do que vinha acontecendo com o rublo. Afinal eles não acompanham a taxa de câmbio como os estrangeiros ou os empresários. No máximo, percebiam que alguns preços de produtos no supermercado vinham mudando, mas que para eles era em função da inflação e de algumas sanções. Agora que a notícia sobre a crise do rublo estourou, apesar de não ter havido a histeria na mídia russa como no Ocidente, a reação de muitos russos foi: "Claro que a situação do rublo nos preocupa, tempos difíceis estão por vir, preços certamente irão aumentar. Contudo, vamos consumir mais produtos russos sem nenhum problema e, além do mais, já passamos por coisas piores (referindo-se à crise econômica de 1998). Vamos passar por mais essa crise". Ao mesmo tempo, há aqueles que disseram estarem preocupados: "Isso não pode acabar bem". Outros falaram que quem realmente irá sentir serão aqueles russos que têm reservas ou poupanças em bancos e esperavam comprar casa, móveis, carros. No entanto, como eles não tinham, não havia tanto assim com o que se preocupar. Todos sabem, contudo, que mudanças estão por vir e não para melhor.
Em março, quando a Rússia anexou a Crimeia, os índices de popularidade do presidente Vladimir Putin atingiram patamares muito altos. Qual é a situação neste momento?
Putin é visto como um líder, o único capaz neste momento de tirar a Rússia da crise que se aproxima. Mesmo aqueles russos com uma visão mais crítica sobre a política do país admitem que esse é o pensamento da maioria da população. Quando pergunto aos russos se a imagem de Putin irá sofrer com a instabilidade do rublo, a maioria responde: "Você conhece outra pessoa que poderia liderar a Rússia para fora desta crise?". Ao mesmo tempo, ao questionar uma amiga russa sobre as análises de alguns experts e os discursos de Putin e Lavrov (Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores)sobre o real motivo dessa crise ser uma "tentativa de mudança de regime na Rússia através de uma revolução colorida (referência à Revolução Laranja na Ucrânia em 2004)", tentando abalar a imagem do presidente para instalar um governo "democrático" ou "aliado", e se isso poderia efetivamente ocorrer na Rússia, recebi a seguinte resposta que me marcou: "O povo russo não vê alternativa a Putin. E esse seria um caminho perigoso a se seguir, já que na história russa nenhuma grande mudança política ocorreu sem revolução, e nenhuma revolução foi pacífica". Por esse raciocínio, quem acabaria por emergir dessa situação não seriam governos "democráticos", mas a facção mais nacionalista e extremista russa, levando a uma maior isolamento e politicas ultranacionalistas. Isso não quer dizer que não há críticas contra o presidente. Conheci vários russos, principalmente colegas do meio acadêmico, que possuem visão crítica, mas mesmo assim eles não veem uma alternativa melhor do que Putin. E, diferentemente do Brasil, onde associamos problemas com a figura pessoal do presidente, aqui isso não me pareceu ser o caso. Em que extensão isso é em função de como a mídia russa coloca os problemas internamente ou outros aspectos, já mereceria uma analise muito mais detalhada que não cabe no momento. No final, o que me parece cada vez mais claro, dia após dia, é que a imagem de Putin não será abalada significativamente por essa situação.
Como os russos veem os Estados Unidos e, em particular, o governo Barack Obama?
Tenho um ótimo exemplo que pode expressar muito claramente a situação: quando cheguei aqui, notei que Vladimir Putin estava em todos os souvenires possíveis. Capas de celulares, canecas, ímãs, enfeites de casa e, principalmente, camisetas com dizeres como: "Putin é tudo". A senhora que vendia as camisetas, orgulhosamente, me mostrou a mesma dizendo a frase em russo e me fazendo entender que a mesma estava vendendo 'que nem água'. Putin virou a cara que a Rússia quer mostrar aos visitantes. Ao mesmo tempo, Barack Obama aparece em capas de celulares como "perdedor" em debates com Putin, ou em papel higiênico, sim, papel higiênico na loja de souvenirs. Acho que isso deixa tudo muito claro e não vejo como essa imagem pode mudar no momento, considerando o momento de isolamento que a Rússia vem passando liderado pelos EUA. É importante salientar que, na Rússia, a questão da identidade nacional é muito forte. Existe um sentimento de que são sempre "culpados/excluídos/esquecidos/traídos" pelos EUA. Por exemplo, existe uma mágoa com esses desde a última crise em 1998, quando a Rússia seguiu as medidas de aberturas político-econômicas demandas pelo FMI, enfrentando diversos problemas (afinal era uma economia fechada na época da URSS) e, sem receber o suporte necessário para seu desenvolvimento, acabou afundada na sua pior crise econômica até então em 1998, da qual os russos se lembram até hoje. Esse sentimento de "traição" permanece, o que ficou muito claro para mim vivendo aqui, e não vejo como isso pode mudar, considerando reações como a forma que a mídia ocidental vem apresentando a situação e o posicionamento de países como EUA em relação á nova crise pela qual a Rússia passa. Além do isolamento pelo qual os russos vêm passando no cenário político internacional, sendo culpados por tudo que ocorre na Ucrânia desde o início, agora - com a crise do rublo -, em vez de países como Alemanha, EUA, Reino Unido, França deixaram de ver a situação somente como uma vantagem política e começaram a analisar as consequências econômicas que isso trará ao mercado internacional e, seguindo o exemplo da China, se unirem para ajudar a Rússia a estabilizar o rublo, não. A primeira reação dos EUA, por exemplo, foi assinar mais sanções contra a Rússia, isolando-a mais ainda, enquanto a da mídia internacional foi apresentar a instabilidade do rublo como uma "punição", apontando o dedo para os russos e criando uma histeria na comunidade internacional, que enfatiza que as fraquezas da economia russa, dependente do petróleo, finalmente apareceram (e que timing bom heim) e que, agora, o presidente Putin não poderá seguir com seu plano de manter a guerra na Ucrânia. . Isso acaba passando uma ideia para o povo russo de que eles estão sozinhos. Pelo menos assim me parece com o contato que tenho com ambos meios de comunicação e vivendo na Rússia, o que me permite ver a história com a perspectiva que um russo veria. Ninguém apoiaria governos que só criticam e isolam seu país e ainda parecem felizes com o fato de que seu país esteja passando por uma crise. Imagine você, um russo, lendo tais perspectivas. Qual imagem Obama pode esperar ter perante os russos depois de tais ações? Nesse caso, o sentimento de traição que citei anteriormente é reforçado pela ideia de 'todos contra nós' e, diferentemente do esperado, Putin não está enfraquecendo. Eles não associam estes problemas à figura do presidente, como disse anteriormente, mas como a um problema na economia que ele terá que resolver. Ao mesmo tempo, para eles, as sanções são somente mais um exemplo de como o Ocidente realmente os trata. E como os russos estão respondendo a isso? Com um bolo de caviar e salmão com os dizeres escritos com caviar: "Nós não ligamos para as sanções", o qual está sendo vendido em Ekateranimburgo. Apesar de sentirem alguns dos efeitos das sanções diretamente, sinto que isso só serviu para fortalecer seu senso de união e orgulho da pátria russa e a ideia de que, se for para defender seus interesses nacionais, deixar de consumir alguns produtos importados não é problema algum.
Essa situação só demonstra que a forma como o a Rússia vem sendo tratada pelos parceiros e pela comunidade internacional não está levando a uma separação interna ou uma busca pelo "salvador EUA", mas pelo contrário, mais uma vez, ao serem isolados e criticados pelo exterior, eles fortalecem-se através de uma identidade nacional forte, a qual é sabiamente utilizada pelo governo. Assim, pela minha experiência pessoal, atualmente os russos estão com uma visão mais negativa em relação aos EUA. Eles se sentem agredidos pela forma como a Rússia é apresentada pelos EUA e pela mídia ocidental e, para eles, Barack Obama de forte não tem nada.
A senhora percebeu alguma reação ao anúncio de reatamento de relações entre Estados Unidos e Cuba?
Não. A notícia teve pouca repercussão se comparado a outros assuntos. No dia seguinte a notícia, o foco estava na lei de ajuda a Ucrânia e da assinatura das novas sanções pelos EUA. No entanto, muitos sabem que essa não é uma situação confortável para a Rússia.
Como a senhora avalia os reflexos da presente crise para o Brasil em termos de relacionamento com a Rússia?
Colocando em contexto, devemos sempre ter em mente que vivemos em um mundo globalizado e a Rússia está fortemente inclusa nesse mundo. É só andar pela Avenida Nevski em São Petersburgo e você se sente como em qualquer capital da Europa. Além disso, como bem colocado pela reportagem da National Interest semana passada, a Rússia não é nenhuma URSS do final da guerra fria, isolada do comercio mundial, mas sim a quinta maior economia do mundo, estando fortemente conectada com mercados da Europa por exemplo. Se a economia russa desmoronar, ela vai levar muitos com ela. Nesse contexto, países devem deixar posicionamentos como os demostrados até agora, de isolamento, e tomar consciência que este fator econômico não deve ser usado como ferramenta política. O mundo pode arcar com uma nova crise de 2008? É mais do que claro que o Brasil só irá perder caso a Rússia afunde numa crise, ainda mais se considerarmos a própria instabilidade que o mesmo vem enfrentando no mercado internacional desde o fim das eleições este ano, levando uma desvalorização histórica do real. Ao mesmo tempo, semana passada, com a crise no rublo, também afetou o mercado brasileiro, como a própria Zero Hora reportou. Portanto, é com esse pensamento que o Brasil deve focar suas relações com a Rússia no futuro e não aderir à diplomacia de isolamento, como vem sendo feita por outros países Ocidentais. Não deve só aproveitar para aumentar o comércio com a parceira (ou focar em ganhos absolutos, aumentando preços dos mercados considerando as sanções, mas também em ganhos relativos), porém também incentivar práticas multilaterais, no âmbito dos Brics, especialmente em parceira com a China para auxílio à economia russa. Agora é o momento da verdade em que poderemos ver se, o que começou com o banco dos BRICS em 2014, poderá se tornar realidade e trazer resultados efetivos que ajudem no suporte da economia de seus membros quando necessário - diminuindo a dependência de instituições como o FMI - ou se não conseguirá ser efetivamente implementado entre seus membros.