A ideia de que o atentado ao Charlie Hebdo foi o 11 de Setembro francês não resistiu às primeiras 24 horas. O país está chocado, mas as manifestações, com público estimado em 100 mil pessoas, não têm a magnitude que seria de se esperar depois de um trauma nacional. Dizer que a França é um país social e politicamente fraturado é incorrer em truísmo - antes do massacre da Rue Nicolas Appert houve o Caso Dreyfus e Vichy. O que importa, neste caso, são as linhas da divisão.
Em primeiro lugar, Charlie Hebdo não representava toda a França. Em suas páginas não encontrava guarida a França racista, carola e colonialista da família Le Pen e das marchas contra o aborto e o casamento gay. Para essa fatia, o refrão "Eu Sou Charlie" não cai bem. Não tardou a aparecer na internet, em contraposição ao lema que guarda ecos de Maio de 68, o islamofóbico Je Suis Charlie Martel ("Eu Sou Charlie Martel"), alusão ao rei carolíngio que derrotou os árabes em Poitiers. Jovens muçulmanos, por sua vez, lançaram a hashtag "Eu Sou Ahmed", em referência ao policial Ahmed Merabet, morto em frente à redação da revista.
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Em segundo, o impopular governo François Hollande precisa de uma causa que lhe permita salvar a pele. A "união sagrada", como foi batizada sua aliança com o arquirrival Nicolas Sarkozy diante do atentado, veio a calhar. Mas há um problema: a Frente Nacional também deseja se sentar à mesa. O partido reclamou por não ter sido convidado à manifestação de domingo em Paris. E, na Holanda, seu aliado europeu Geert Wilders, do Partido para a Liberdade, não deixa por menos: "O problema é o Islã".
O problema não é o Islã, religião de 1,7 bilhão de pessoas que, segundo Michel Houellebecq, "aceita o mundo como ele é". O problema é a exclusão, o desemprego, o racismo e a guerra. Em algum lugar, Chab, Cabu e Wolinski devem estar rindo dos que fingem ser Charlie e Le Pen ao mesmo tempo.