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Com frequência cada vez maior, renomados diretores de cinema têm abraçado projetos na televisão. Fernando Meirelles ficou conhecido internacionalmente por filmes como Cidade de Deus (2002), com o qual concorreu ao Oscar de melhor direção, e O Jardineiro Fiel (2005), que valeu a Rachel Weisz a estatueta de atriz coadjuvante. A TV sempre esteve no seu horizonte, mas ele, como muitos de seus colegas no Brasil e no Exterior, defende que o veículo tem oferecido nos últimos anos desafios criativos mais estimulantes do que a produção para o cinema.
Nesta segunda-feira, Meirelles apresenta a minissérie Felizes para Sempre?, que sua produtora, a 02 Filmes, realizou em parceria com a Globo. O paulistano de 59 anos fala sobre esse novo trabalho, os projetos futuros e a situação do cinema brasileiro. Apoiador de Marina Silva na campanha presidencial, Meirelles ainda comenta, em entrevista por e-mail, sua expectativa com o segundo governo Dilma e se diz em pânico com a crise da água que pode paralisar o Estado de São Paulo.
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ENTREVISTA
ZH - O que o atraiu no projeto de dirigir a minissérie Felizes para Sempre? na TV?
Fernando Meirelles - O gênero. Nunca havia feito um folhetim, gostei dos personagens e da dramaticidade das situações e embarquei. Confesso que não sou fã de novela, mas fazer cenas de traição, mulheres frias, filhos trocados, foi o máximo. Acho que todos temos esse fascínio de nos intrometer na vida dos outros.
ZH - O que você destacaria nessa nova versão da minissérie Quem Ama Não Mata (1982)?
Meirelles - O texto de Euclydes Marinho não se propõe a ser uma revolução na dramaturgia de folhetim, que é o gênero da série, mas trata alguns temas e personagens de forma honesta e sem julgamentos. Ninguém é totalmente bom nem mau, os personagens são tridimensionais e humanos, o que torna a série muito contemporânea. Por exemplo: há uma relação homossexual na trama com um tratamento muito interessante para a teledramaturgia. O casal romântico central são duas mulheres, mas não há sequer uma frase na série que faça menção a isso como uma questão. A situação entra com absoluta naturalidade. Ainda sobre o texto, um outro aspecto interessante é que a trama central envolve um empreiteiro e sua relação com o Estado, o que o torna muito atual. Vale dizer que isso foi pura coincidência, pois Felizes Para Sempre? foi escrita em 2013, antes da operação Lava-Jato.
ZH - Que limites precisam ser respeitados para exibir uma produção em uma emissora de grande audiência como a Globo? Trabalhar com TV aberta e com TV fechada é muito diferente?
Meirelles - Infelizmente, tivemos de cortar alguns diálogos, imagens, e quase uma trama inteira caiu. Isso não foi uma opção da Globo, mas uma contingência dada pela classificação indicativa do Ministério da Justiça. Sexo e drogas foram os principais motivos. A série inclusive mudou de horário para poder ser exibida com menos cortes. A TV fechada, por depender de uma escolha do espectador, é menos restritiva. Faz parte.
ZH - É possível fazer algum paralelo entre a minissérie e seu filme 360 (2011), também com diferentes núcleos de personagens?
Meirelles - Não tinha pensado nisso, mas há alguma coisa em comum de fato. Na minissérie, as cinco histórias estão mais ligadas do que em 360, mas os dois trabalhos falam sobre relacionamentos, e o sexo é um elemento importante. Mesmo assim, o tom e as histórias são bem diferentes.
ZH - Como se dá seu trabalho como diretor-geral? Você dirige atores no set ou atua mais como "técnico" dos outros três diretores da minissérie (Rodrigo Meirelles, Paulo Morelli e Luciano Moura)? Como vocês dividiram o papel de cada um na direção da trama?
Meirelles - Eu dirigi três episódios, e os outros diretores dirigiram dois ou três cada um. O diretor-geral toma todas as decisões de produção que também estarão nos outros episódios. Fecha elenco, locações, cenografia, figurino, estilo de cabelo e maquiagem de cada personagem, ajusta o texto, seleciona as músicas a serem usadas por todos etc. Mas sempre consultei os outros diretores sobre cada decisão dessas, portanto, o olhar deles está muito presente e este é de fato um trabalho a oito mãos, já que éramos quatro diretores.
ZH - Cada vez mais, renomados diretores de cinema estão tocando em paralelo projetos de TV. Woody Allen anunciou há poucos dias uma série on demand para a Amazon. Em que medida os trabalhos na TV o interessam?
Meirelles - Creio que faço parte deste time de diretores que se encantaram com a nova televisão. Andava com uma certa crise em relação ao cinema, pois, atualmente, quase todos os filmes a que assisto me lembram algum outro a que já havia assistido. A sensação é que as possibilidades de contar uma história em 90 minutos já foram tão exploradas que praticamente acabaram-se as surpresas. Ao contar uma história em 10 episódios, pode-se criar tramas muito mais complexas, aprofundar cada personagem e ainda há um mundo inteiro de possibilidades não inventadas de estruturar esta história. Isso faz com que a TV seja hoje muito mais desafiadora e complexa para um realizador do que o cinema.
ZH - A lei da TV paga, que determina um número mínimo de horas de produção local nas emissoras a cabo, já surtiu os efeitos esperados? Na sua avaliação, o que está no caminho certo e o que precisa ser repensado?
Meirelles - A lei está cumprindo muito bem seu papel. O número de produções nacionais foi multiplicado por dezenas de vezes.Alguns programas já estão em suas terceiras temporadas, e evidentemente cada uma delas vem melhor do que a anterior. O Brasil está aprendendo a fazer TV e, como acontece no mundo inteiro, o melhor da programação em pouco tempo estará fora da TV aberta.
ZH - Quais são os seriados a que você gosta de assistir na TV e por que razão?
Meirelles - Gostei de todas estas séries que ganharam visibilidade nos últimos anos. Há também algumas com menor visibilidade que me arrebataram, como a série inglesa Black Mirror, as francesas Les Revenant ou Carlos, entre outras. Todas têm algo de inesperado em termos de estrutura ou proposta. Embora goste também de um bom texto clássico, acho que ser surpreendido é uma condição importante para me fisgar.
ZH - Já é praticamente um clichê dizer que a TV é o novo cinema. Não lhe parece exagerada essa assertiva? O público, em uma escala mundial, parece cada vez menos interessado em pagar ingresso para ficar duas horas diante de uma narrativa que não seja diversão ligeira e rasa?
Meirelles - Parece que a nova TV está é engolindo o cinema. Minha tese é que o que permitiu esse salto de qualidade na TV foi a tecnologia. Hoje, as séries são rodadas exatamente com as mesmas câmeras e as mesmas equipes que fazem cinema, e as TVs em HD ou 2K (padrão de resolução digital homologado pelos grandes estúdios americanos) respondem a esta qualidade. Enquanto a velha TV era apoiada basicamente no texto e no close dos atores para contar suas histórias, hoje é possível, como no cinema, confiar na imagem e no som para se criar drama na TV. Planos mais longos ou planos gerais, insuportáveis na velha TV, funcionam muito bem numa TV de plasma de 49 polegadas hoje em dia, e daí veio toda a mudança.
ZH - Mas os grandes filmes continuam a ser feitos. O que chamou sua atenção recentemente no cinema nacional e estrangeiro?
Meirelles - No cinema nacional, minha última boa surpresa foi o filme Elena, da Petra Costa, que é um documentário poético muito inspirado sobre a perda de uma irmã. Um longa internacional que me impressionou foi Boyhood - é ficção, mas tem um pé no documentário também, já que as histórias dos personagens são baseadas na vida dos atores. Aliás, não sei por que, mas tenho assistido a mais documentários do que ficções. Talvez em razão do que comentei acima: a maioria das ficções tem me parecido mais previsível.
ZH - A propósito, quais são seus próximos projetos na TV?
Meirelles - Em abril, devo dirigir dois episódios da segunda temporada de uma série canadense chamada Sensitive Skyn, com a Kim Cattrall. Jogo rápido, vou fazer porque o diretor e ator da série é amigo e me convidou pelo prazer da empreitada. Fora isso, estou tentando convencer a Globo a me convidar para dirigir uma adaptação de Um Defeito de Cor, romance da Ana Maria Gonçalves. A história é a saga de uma escrava no século 19, na Bahia, desde quando é capturada até sua volta para a África, 60 anos depois. Há também um projeto de TV para a BBC em desenvolvimento, para ser rodado em 2017, se der certo.
ZH - Quais são seus próximos projetos no cinema? O tempo, o custo e o trabalho empreendidos na produção de um filme e a posterior expectativa sobre seu resultado ainda o entusiasmam?
Meirelles - Continuo esperando fechar uma atriz para rodar Nemesis, um filme inglês sobre o (armador grego) Onassis, que eu deveria ter filmado em 2014. Fora esse, há duas ideias sendo cozinhadas, mas, como disse, ando meio desanimado com cinema, especialmente no Brasil, onde os filmes de que gosto ninguém quer ver e a maioria dos que fazem sucesso não consigo assistir nem até a metade. As histórias que eu gostaria de contar não sei se interessariam a um número de gente suficiente para tornar a empreitada viável. Essa constatação me mantém devagar ao pensar em projetos para o cinema.
ZH - O cinema brasileiro, grosso modo, está dividido entre poucos filmes populares que a crítica odeia mas o público adora, e que fazem mais de um milhão de espectadores, e muitos filmes que têm público pífio, quase sempre com lançamentos modestos. Por que a produção nacional tem dificuldade em apresentar produções que dialoguem com o grande público sem subestimá-lo? Por outro lado, temos casos como O Lobo Atrás da Porta, bom filme com potencial comercial interessante mas que simplesmente não aconteceu.
Meirelles - É exatamente a questão que eu expunha antes. Hoje, para filmes darem certo na bilheteria, precisam ser filmes-eventos, devem ser lançados com pirotecnia ocupando ao menos 15% do circuito de salas. Quem não tem dinheiro para fazer isso desaparece. Acho que o volume de ofertas não só de filmes, mas de TV, internet e informação em geral acaba fazendo com que qualquer pequeno lançamento simplesmente desapareça. Essa situação não é só no Brasil, é global. Como em outros mercados, os pequenos tendem a ser engolidos pelos grandes, independentemente da qualidade. Foi isso o que aconteceu com O Lobo Atrás da Porta, que, de fato, é um excelente filme.
ZH - Como você avalia essa intervenção do governo para limitar a ocupação de blockbusters nos cinemas do Brasil?
Meirelles - Muito interessante. Seis salas de um complexo passando o mesmo filme não beneficia nem o próprio dono do cinema. Medidas que levem a um maior número de títulos em cartaz são boas não só para o cinema brasileiro ou para o cinema independente internacional, mas principalmente para o espectador, que poderá ter mais opções de escolha. É muito frustrante chegar num complexo de cinema com 12 salas para assistir a alguma coisa e encontrar apenas dois filmes em cartaz. Chega de filmes-ponte-aérea, estes que começam a cada meia hora.
ZH - O sucesso de público e crítica do filme argentino Relatos Selvagens costuma ser citado como modelo a ser perseguido pelo cinema brasileiro. Essa comparação lhe parece pertinente?
Meirelles - O filme é mesmo uma joinha. O texto dialoga com o público ao captar muito bem um certo mal-estar da nossa civilização (com a licença do Freud). Além de bom roteiro e ótimos atores, é também bem dirigido e merece a nomeação ao Oscar que recebeu. Filmes tão redondos que falem com o público, como este, sempre serão um modelo a ser perseguido. Mais uma vez ponto para os hermanos, que no cinema nos tratam como os alemães no futebol.
ZH - Qual sua expectativa para esse segundo governo Dilma, em especial no setor cultural?
Meirelles - Minha torcida para que a Dilma faça um bom governo é um gigante. Minha expectativa de que isso aconteça é uma anã. Não quero soar repetitivo, mas o novo ministério montado é mesmo frustrante. Uma ministra da Agricultura que ainda acha que florestas ocupam áreas onde deveria haver gado e soja, um ministro das Minas e Energia que parece gostar mesmo de petróleo e vai deixar de lado as fontes de energia alternativas mais uma vez. Aldo Rebelo como o nosso homem da inovação e da ciência parece uma piada de mau gosto. Um pastor no Esporte? Jaques Wagner na Defesa? O que Helder Barbalho entende de pesca? Parece que a única coisa que a maior parte dessa equipe tem em comum é o fato de eles desconhecerem completamente as áreas que vão comandar. O ministro da Cultura, que você me pergunta, é um dos que fogem a essa regra. Concorde ou não, ele sabe onde está pisando. Mas, mais do que esse banho de água fria do primeiro mês de "novo" mandato, o que me preocupa mesmo no momento é a falta de água em São Paulo.
ZH - A situação é tão grave assim?
Meirelles - Aproveito este espaço para dividir meu pânico com os gaúchos. São Paulo deve parar em maio ou junho. Teremos fábricas fechadas, quebra de safras, empregos perdidos, escolas em férias coletivas, talvez parte da população tendo que ser evacuada e toda a cadeia que vem atrás disso. A má notícia é que não será só na capital: grande parte do interior do Estado também já começou o ano quase sem água e sem perspectivas de chuva. Sinto que em 2015 e 2016 teremos os piores dois anos da história recente do país, e esta é a má notícia para o Rio Grande do Sul. Com São Paulo parando, o país todo deve desacelerar. Mais do que torcer para a Dilma fazer um bom governo, torço mesmo é para que eu esteja muito enganado.