Partiu do ex-presidente da França Nicolas Sarkozy, hoje na oposição conservadora, a frase que melhor ilustra o sentimento dos europeus em geral e dos franceses em particular no atual momento.
- Os homens civilizados devem se unir para responder à barbárie - disse Sarkozy, após reunião de 45 minutos com o atual presidente francês, o socialista François Hollande.
Tal sentimento irá às ruas de Paris neste domingo, quando a sociedade civil promove, com apoio do governo, a "marcha republicana", da qual "ninguém deve ser excluído", conforme Olivier Faure, porta-voz do PS.
- Aguardamos até a Angela Merkel (primeira-ministra da Alemanha), porque temos um problema que deve ser motivo de reflexão para toda a Europa - projeta o deputado socialista francês Eduardo Cypel, natural de Porto Alegre, a Zero Hora.
Leia entrevista de Eduardo Cypel, deputado socialista francês e natural de Porto Alegre
No mapa, confira o local dos ataques em Paris:
De fato, a Europa vive um dilema. Preocupa-se com o avanço do terror fundamentalista islâmico. Mas também teme o anti-islamismo que fere princípios iluministas. O atentado com 12 mortos ao jornal satírico Charlie Hebdo alimenta movimentos anti-imigração em todo o continente e inflama a "guerra cultural" ilustrada pela confirmação da Corte Europeia dos Direitos Humanos, em julho de 2014, da proibição ao uso da burca (véu islâmico de corpo inteiro), que entrara em vigor na França em 2011.
A França, portanto, é simbólica. Além de ser o berço dos modernos valores republicanos, tem a maior população muçulmana europeia, entre quatro e seis seis milhões de pessoas originárias de diferentes países islâmicos. E teme a brutalização da sociedade, com o fantasma do terrorismo islâmico e com a xenofobia, que subverte sua identidade laica e liberal.
- Precisamos nos unir para enfrentar esse momento brandindo os valores que fazem da França o berço do iluminismo - acrescenta Cypel, que enfatiza, entre esses valores, a aceitação de diferenças.
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Alguns dados preocupam as pessoas que preservam esse sentimento republicano. Levantamento recente constatou que os franceses acreditam que os imigrantes constituem 31% da população, quatro vezes o número real, conforme a estimativa do Centro de Pesquisas Pew, segundo a qual a população muçulmana no país é de 7,5%. Na Alemanha, estudo revela que 57% dos alemães se sentem ameaçados pelo islamismo, o que levou Angela Merkel a declarar, na última quinta-feira, que o país tem boas relações com "a imensa maioria dos muçulmanos".
Thomas Farines, analista de relações internacionais e colaborador do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (Ceiri), falou com ZH ao chegar de Paris - onde houve o atentado ao Charlie Hebdo - a Londres, onde trabalha com crianças em situação de risco no sul da cidade.
- Aqui, o governo britânico está assustado, policiou as ruas. Vivemos um estado de apreensão. Os países da Europa precisam refletir e mudar sua política de integração para os imigrantes. O (jornal) Le Monde mostrou que os autores do atentado contra o Charlie Hebdo começaram com pequenos roubos e deram uma guindada em direção ao extremismo religioso. Na Inglaterra, há bolsões. Se você é brasileiro, mora onde moram brasileiros. As comunidades se fecham. Em uma, tinha um tribunal que julga pela sharia (lei islâmica) - afirma.
A preocupação europeia aumentou ainda mais quando o MI5, serviço de inteligência britânico, revelou que o braço da rede Al-Qaeda na Síria planeja "atentados em grande escala" no Ocidente. E ainda se intensificou quando extremistas islâmicos como os somalis shebab classificaram de "heroico" o atentado ao Charlie Hebdo.
- A Europa precisa repensar as políticas de integração. Isso não ocorre em relação a filhos e netos de imigrantes. O imigrante não é um problema, mas sim como lidamos com isso. Precisamos entender a guinada ao extremismo e integrar as pessoas ao mesmo tempo em que respeitamos suas culturas - diz Farines.
França enfrenta mais um paradoxo histórico
A França, alvo do atentado que fez a Europa tremer nas suas bases, tem histórico de paradoxos: berço do iluminismo, conta com o símbolo da guilhotina. Recebeu imigrantes como poucos países na Europa, mas foi palco do "caso Dreyfus", escândalo político que a dividiu no final do século XIX, com a condenação por alta traição de Alfred Dreyfus em 1894, oficial de artilharia do exército francês, de origem judaica. O acusado, comprovadamente inocente, sofreu um processo fraudulento conduzido a portas fechadas, mediante provas fajutas, que levou à exacerbação da xenofobia na época e ao texto clássico J'accuse! (Eu acuso!), de Émile Zola.
Agora, políticos e analistas falam em retomar as origens de igualdade, fraternidade e liberdade, temendo que o combate ao terrorismo ao mesmo tempo implique o aumento do anti-islamismo, preconceito inadequado a esses valores.
Pois há manifestações como o livro do jornalista Eric Zemmour intitulado Le Suicide Français (O Suicídio Francês), o ensaio mais vendido em 2014, segundo o qual a imigração muçulmana em massa está entre os fatores que vêm destruindo os valores seculares franceses. Também há a extrema direita em ascensão e pedindo rigor na repressão. E houve a reação popular: uma mesquita na cidade de Le Mans foi alvo de tiros, e uma explosão destruiu uma lanchonete de quebab ao lado de uma mesquita no centro da cidade de Villefranche-sur-Saône.
Por outro lado, é de 1985 a fundação da organização SOS Rassisme, com a campanha "touche pas à mon pote" (não toque no meu amigo) para promover a coexistência pacífica entre os diferentes grupos étnicos e religiosos.
Essa mesma França participa de ataques aéreos no Iraque contra o Estado Islâmico (EI) e acompanhou os aliados ocidentais em diversos confrontos contra organizações e países islâmicos. Nos últimos meses, o próprio EI e a Al-Qaeda convocaram diversas vezes seus partidários a atacar o país.