Diga aí: você pensa em andar na beira da praia? E aqui não se fala de ter um vago plano futuro de tirar umas férias, não, o que estamos perguntando é se, já na praia, confortavelmente instalado em sua rotina de veraneio, você pensa enquanto anda na praia - e se esses pensamentos são dedicados ao ato de andar na praia que você está praticando.
Se você pensa, enquanto anda pela praia, qual seria a melhor maneira de andar pela praia. Não? Ei, a pergunta não é tão absurda quando se conhece Pedro Guilherme Luce, veranista de Torres que está mais para "o cara" do pedaço, o homem que conhece estas areias há seis décadas, que passa religiosas seis ou sete horas à beira-mar, que tem sua cadeira de praia guardada não em casa, mas em um dos quiosques das redondezas, que chama todos os ambulantes do pedaço pelo nome; Pedro Guilherme Luce, 71 anos, comerciante aposentado, o homem que domina a arte e a ciência de caminhar na praia.
- Para mim, não é importante só estar na praia. Eu gosto é do estado de praia - filosofa.
Neste veraneio, Luce chegou a Torres com a família no último dia 6. Tirando breves e pontuais retornos a Porto Alegre, por questões da vida prática, ele só deve levantar acampamento em março. Sua filosofia do "estado de praia" significa que a praia não é apenas um item no rol de coisas a fazer nas férias. As férias são a praia, o que pode ser traduzido por uma disposição tranquila para aproveitá-la ao máximo, horas por dia.
- De meia em meia hora, saio para uma caminhada. Dou uma volta por todo o calçadão, volto, encontro um conhecido, outro, subo até lá a Guarita e aí volto. Não tenho muito um objetivo, é mais como andar pela minha vizinhança, sempre encontro alguém com quem posso colocar o papo em dia.
Para muitos, praia é dormir até tarde, mas Luce, antes das 8h30min, já está na rua em sua primeira caminhada, invariavelmente sem camisa, trajando uma bermuda confortável. Para se proteger do sol, um chapéu de pescador e protetor solar fator 15. Os chinelos vão na mão, para evitar aquelas manchas em formato de asa delta que a pele mais clara coberta pelo calçado deixa nos pés.
- Tenho o couro duro, não queimo muito, então não preciso de muito filtro. Não gosto é de andar com os pés marcados - explica, ao apontar para os pés devidamente marcados do repórter com quem conversa, enfiados, para piorar, em um chinelo vermelho do Inter.
Quando percebe isso, o gremistaço Luce ameaça, brincando, cancelar a entrevista:
- Bá, estou falando com colorado, ainda por cima!
Depois de sair de casa, Luce passeia pela calçada junto à praia. Volta umas nove e meia, toma um café e retorna - muitas vezes com a família, que se instala em um gazebo na areia, ponto de encontro de uma tradicional comunidade de veranistas. Depois disso, as caminhadas de Luce passam a ser na extensão de orla junto ao mar, onde ele já intui mais ou menos por instinto a faixa de areia em que vai se sentir mais confortável para caminhar.
É sempre aquela exatamente intermediária entre o mar e o ponto em que as areias fofas começam a formar cômoros. Para o andarilho da praia, é ali que se localiza o ponto ótimo, a bissetriz perfeita, o solo apropriado para uma caminhada longa e prazerosa. Às vezes, de Itapeva à Praia da Guarita, ida e volta.
- Não gosto muito de caminhar na areia muito mole perto da água. A gente vai afundando e se atrasa. Na areia seca e fina, ali do outro lado, a mesma coisa. Na faixa que eu escolho, ela está firme, mas não dura o bastante para machucar o pé - diz, transmitindo os fundamentos quase filosóficos de uma caminhada perfeita.
Quando não está flanando pela areia, Luce se refugia em uma tenda grande em que sua família se instala à frente do Quiosque do Zé, o de número 16. Ali, ficam muitas vezes sua mulher, funcionária pública aposentada, seus dois filhos, seus dois netos (há outros dois a caminho), em especial a xodó Antônia, de seis anos, companheira do avô nas caminhadas e nos mergulhos, hoje com a idade regulando com a de Luce quando ele, em 1949, começou a frequentar Torres.
Por volta de umas três horas, a família se desloca e volta para casa para almoçar - madrugador no veraneio, ao menos em uma coisa Luce concorda com o ritmo litorâneo: temporada de praia é época para comer tarde e, à tarde, tirar um cochilo. Nos fins de semana, o almoço fica por conta do andarilho, que inclui uma tarefa adicional em sua caminhada zen pela areia: comprar, ali em Torres mesmo, um robalo de bom tamanho - ou um linguado grosso, se não encontrar o primeiro - e levar para casa, onde será preparado com um molho remolado que leva cebola picada, pimentão e um pouco de maionese.
- Como eu já te disse. Meu negócio não é ir para a praia. Eu curto é a vida de praia.
Testemunha da transformação
A historiadora Joana Carolina Schossler, em seu livro A História do Veraneio no Rio Grande do Sul (Paco Editorial, 2013), demarca ali pela década de 1940 um ponto de transformação na relação dos gaúchos com o seu litoral. As praias locais já haviam passado de estâncias terapêuticas no século 19 para locais de veraneio em hotéis, a partir da inauguração da rodovia ligando Gravataí a Osório e Tramandaí, nos anos 1920.
Na década de 1940, começa uma nova fase chamada "comunitária", na qual os veranistas começam a migrar dos hotéis para residências de verão construídas à beira-mar. É quando as comunidades litorâneas começam a de fato se expandir até se tornarem, décadas mais tarde, as cidades que conhecemos hoje. Pedro Guilherme, ainda criança, foi uma testemunha dessa transformação. Sua primeira estada em Torres foi aos sete anos, acompanhando a família, em 1949.
- Na época, não tinha quase nada disso que se vê hoje. A praia praticamente se ergueu a minha volta ao longo do tempo - comenta ele.
Com tanto tempo de "casa", Luce é um daqueles habitantes que estão misturados ao cotidiano da praia tanto quanto os salva-vidas da Operação Golfinho. Cumprimenta pelo nome os ambulantes da praia, como a Rosinha do Pastel, que sempre passa para abastecer a família Luce sob o gazebo na areia, ou o vendedor de sorvetes Bigode, com quem costuma comprar um picolé para a neta quando ambos passeiam juntos - ele, particularmente, prefere se refrescar com um suco de abacaxi no Quiosque do Zé.
A turma de Luce é composta por outros veranistas como ele: cidadãos aposentados e suas famílias já na terceira geração que se encontram no veraneio em Torres há mais de 30 anos. Nesse grupo, Luce é uma referência mesmo para os vizinhos de guarda-sol que passaram a frequentar a praia há pouco tempo, como Eber de Sá, que há cinco anos veraneia em Torres e é seguidamente admitido nas reuniões de amigos na beira da praia. Às vezes, Luce precisa se esforçar para lembrar o nome real do amigo, a quem todos chamam de Pardal.
- Ele está aí desde sempre, ele e a turma dele são uma tradição da praia tanto quanto o guarda-sol - brinca Pardal.
Uma das combinações do grupo: cada um tem a liberdade de fazer o que estiver a fim.
- Se um quer mergulhar e o outro quer caminhar, vai um caminhar, outro mergulhar, e um pessoal ainda fica ali mesmo esperando os demais. Não tem isso de todo mundo estar meio que obrigado a ficar dando atenção para os outros o tempo todo - resume.
Ao longo de seis décadas à beira-mar, poucas vezes Luce se aventurou para fora de Torres. Com o tempo, a própria ideia começou a soar estranha a este homem tranquilo que parece ter de tudo à mão na praia que conhece há mais tempo do que a idade de muitos dos atuais frequentadores.
- Praia para todo mundo é igual, eu acho. Aqui, contudo, é a minha praia, tem mais coisas para fazer, mais gente que conheço. Nem penso em trocar por nada - diz, antes de sentar-se com a neta no gazebo.
Por hoje, ele já caminhou bastante. Amanhã tem mais.