São 7h e Tramandaí amanhece nublada, a temperatura caiu para os níveis que seria de esperar de um verão civilizado, e uma massa indistinta de nuvens ao longe promete chuva para mais tarde. Não é bom sinal para quem pretende pescar, mas isso não impede que Valdomiro Lentz Pereira se encaminhe para o portão (uma placa manuscrita, presa na cerca de arame, anuncia peixe para vender) e ganhe a rua carregando ao ombro os cerca de três quilos e meio de malhas e contrapesos da tarrafa com que trabalha. Com chuva ou não, mesmo que a possibilidade de pegar um peixe, um só que seja, escoe como água pelas tramas da rede, não apenas Valdomiro, mas muitos pescadores da cidade põem o pé na areia.
- Nossa profissão é essa. Trabalhar em outras coisas a gente só sabe para fazer algo para nós mesmos, em casa, um conserto ou outro. E se tem algo que a pesca ensina é que ninguém te obriga a ir lá fora, mas ninguém vai obrigar o peixe a vir aqui na tua casa, também.
Para todos os que àquela hora ainda estão esticando o sono tardio de veraneio, a temporada é quente - e quando eles estiverem a caminho da praia, no mínimo daqui a uma hora, um calor morno já terá se instalado no Litoral. Neste momento, no entanto, Valdomiro veste um casaco de nylon de estampa camuflada, de manga comprida, por cima de outa camiseta manga longa - a água no litoral gaúcho, como a maioria de vocês praianos sabe, não é lá muito quente, ainda mais a esta hora da manhã. Hoje não é o caso, mas às vezes Valdomiro sai de casa vestindo, por cima de tudo, um baby-doll azul.
VÍDEO: Valdomiro sustenta a família vendendo pescados
Calma quem chegou na frase anterior e disse "ahn?!": Valdomiro não busca se aquecer usando roupa íntima em plena rua. Baby-doll é o nome que os pescadores da região dão a um misto de colete e sacola tramada em rede de nylon. Na mão, pode ser fechada como um saco de viagem puxando os cordões costurados na barra. Dentro d'água, a peça pode ser vestida por meio de dois buracos um pouco mais largos nas laterais, como se fosse uma camisa, e vira então uma bolsa de canguru em que os pescadores vão guardando os peixes que apanham quando estão mais adiante da costa, evitando assim muitas viagens de ida e volta à faixa de areia. No colete cabem 10 ou 15 tainhas, e aí o cordão é usado para apertar o baby-doll na cintura. Hoje, o baby-doll vai na mão, como uma mala de garupa. Dentro, Valdomiro leva a carteira de pescador autorizado pelo Ministério da Pesca, enrolada em um saco plástico e acondicionada no interior de um estojo redondo, preto, de plástico, daqueles que se usava para guardar CDs na época em que ainda comprava-se CDs.
Conheça o homem que domina a arte e a ciência de caminhar na praia
Conheça a história de uma das raras salva-vidas mulheres do Estado- A fiscalização aperta sempre para ver se tu está com a carteira, o que é certo, porque tu tem de andar com a identificação. Mas, às vezes, eles reclamam porque tu deixou na beira da praia e não está com ela rio adentro. Se molhar e estragar, a burocracia é tanta que eles são capazes de não te dar outra - conta.
O pescador não precisa caminhar muito, menos de 500 metros e já está na curva da barra, seu local de pesca tradicional. A suspeita de que o dia será fraco se confirma quando Valdomiro se aproxima da água. Ali, o grupo de outros pescadores mais se dedica a bater papo na areia do que a lançar a tarrafa, sinal de que as primeiras tentativas não foram muito promissoras.
- Dia fraco a gente vê só em chegar perto. Se tem um só pescador na água e os outros fora é porque não está dando muita coisa. Está ruim, hoje. Quando o mar está muito agitado, o peixe se afasta e fica ruim para a gente entrar porque a água fica muita alta - explica.
Menos pescado, mais fiscalização
Valdomiro precisa portar sempre sua carteira profissional emitida pelo Ministério da Pesca. Foto: Mateus Bruxel
Na comunidade pesqueira de Tramandaí, o ofício é coisa de família, o que é e ao mesmo tempo não é o caso de Valdomiro. Em uma profissão que passa de pai para filho, ele não teve exemplo no pai, funcionário aposentado da Corsan que viajou por boa parte do Estado e até por Santa Catarina trabalhando para criar os 10 filhos - sete homens, três mulheres, Valdomiro, o caçula, foi o único a nascer em Tramandaí. Ao mesmo tempo, sim, Valdomiro aprendeu o ofício dentro de casa, ensinado pelos irmãos mais velhos - todos os seis irmãos homens se dedicaram à pesca. Acompanhava os veteranos que seguiam os botos atrás dos melhores peixes, um costume ainda praticado em Tramandaí.
- A primeira tarrafa que eu tive foi uma rede pequena feita pelo meu irmão. Ele me dizia: ó, pode ir junto, mas não vai atrapalhar, aí eles seguiam o boto e eu lançava a tarrafa sempre pro lado contrário das redes deles - relembra.
Valdomiro dá um peteleco na pala do boné e se dirige para a água. Entra no mar até apenas as canelas e começa a lançar a tarrafa de mão mais perto da areia. A rede é colocada sobre a mão esquerda como uma tenda de circo sustentada pelo punho fechado. Um giro de corpo com o auxílio da mão direita e a rede é lançada e se abre em disco no ar antes de ser puxada para baixo pelo peso dos chumbinhos. A mão esquerda continua segurando o fio e começa a puxar depois de passado um minuto ou dois. Com seu rosto sério e vincado, o pescador olha com atenção para o conteúdo da rede - se por acaso um bagre tiver se enroscado na rede, ele deve ser devolvido à água o mais rápido possível, já que a pesca desse peixe em particular está proibida até fim de março. Tainhas e papa-terras, os pescados mais frequentes, vão pra dentro do baby-doll. Valdomiro se abaixa e recolhe a rede para um novo lançamento. Ela veio vazia.
O verão, para os profissionais locais, encarna uma espécie de paradoxo: a estação movimenta as cidades costeiras e enche o Litoral de praianos em férias dispostos a comprar peixes frescos junto aos pescadores locais, mas é também o mês em que a fiscalização aperta e a própria multidão de banhistas altera o equilíbrio das águas e perturba a aproximação dos peixes. Quando o verão acaba, as águas tranquilas, em tese, ofereceriam mais peixe, mas aí os veranistas compradores se reduziram.
- Verão costuma ser a época de ganhar um dinheiro, mas também é o tempo da bagunça, muita gente, jet-ski, os mangotes da Petrobras que são inspecionados o verão inteiro para cuidar vazamentos... Aí os melhores horários são bem cedo ou bem tarde. Quando eu não consigo nada por aqui de manhã, volto à noite - comenta Valdomiro.
Ele precisará voltar à noite, já que a manhã foi uma sucessão de redes vazias. Ele enrola a tarrafa e não se desespera, acostumado ao ritmo de irregularidade exasperante da profissão. No freezer que mantém na pequena casa em que mora - e que serve também como suporte para a TV - ele mantém ainda tainhas de uma boa pesca em dias anteriores.
Pescar na região tem sido um problema para vários pescadores profissionais. A atividade vem declinando e alguns, mais pessimistas, arriscam que ela talvez não dure muito, devido às proibições mais rigorosas e à própria diminuição do pescado. De acordo com o presidente do Sindicato dos Pescadores de Tramandaí, Dilton Cardoso, há várias disposições em discussão para a proibição da pesca de mais 250 espécies, o que deve ser um golpe violento na atividade - algo discutido nos intervalos do lançamento de redes, quando o grupo de pescadores se reúne na areia. Valdomiro, portanto, não se preocupa tanto em se vai conseguir pegar mais peixes amanhã, e sim se seu filho Cauã, de oito anos (ele ainda tem uma menina de quatro anos, Laísa), conseguirá se sustentar como pescador se resolver seguir a profissão do pai.
- Muito pescador antigo criou os filhos com a pesca. Eu também espero criar os meus, mas sei que hoje é mais difícil.
* Zero Hora