Longe do Rio Grande do Sul há nove anos, sem filiação partidária há 12, o ex-governador Antônio Britto é personagem em todas as campanhas eleitorais e assunto nos debates sobre a situação das finanças. Para os admiradores, foi o governador que teve coragem de fazer mudanças profundas, com a venda de estatais e o corte de privilégios de servidores públicos. Para os adversários, o homem que instituiu os pedágios, aprovou aumentos salariais que não foram cumpridos e comprometeu o futuro do Estado ao renegociar a dívida com a União em condições desfavoráveis.
Presidente executivo da Interfarma, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, Britto faz um trabalho político, mas se diz aposentado da vida partidária. Nos últimos anos, o ex-governador se impôs um voto de silêncio, quebrado apenas numa entrevista para um livro produzido pela revista Voto. A cada pedido para tratar dos problemas do Rio Grande do Sul, respondia que estava afastado da vida pública e que não lhe cabia opinar nem responder às críticas dos antigos adversários a seu governo.
Com a eleição de José Ivo Sartori e a discussão sobre as dificuldades que vêm pela frente, concordou em falar. "Depois de muito tempo, acho que a situação chegou a um ponto que não devo me omitir", respondeu Britto, por e-mail, a um pedido de entrevista.
Dois dias depois, recebeu ZH em sua residência, num condomínio fechado no Morumbi, um dos bairros mais nobres de São Paulo. É lá que ele vive com a mulher, a advogada Luciana Maydana, e os trigêmeos Pedro, Bernardo e Caetano, de 12 anos, todos gremistas como o pai, mas torcedores de times diferentes em São Paulo.
Durante duas horas, falou sobre a situação do Estado e deu um conselho a Sartori: que escancare os números para que a população tenha clareza das dificuldades.
O Rio Grande do Sul tem futuro?
Acho que a questão que está posta dentro do Rio Grande do Sul é a demora em decidir enfrentar as questões das quais depende o seu futuro. Com a história que o Rio Grande tem, com a qualidade das pessoas, com alguns setores da economia, não há por que pensar que não tem futuro. A questão é que, entre o presente difícil e o futuro do Estado, há necessidade de algumas decisões que, se não são tomadas, vão adiando o futuro e fazendo ele custar cada vez mais.
Que decisões seriam essas?
Quem examina essas coisas fora do período eleitoral e fora da lógica eleitoral vai se dar conta de que não importa quem é o governador, qual é o partido. Há um problema no Rio Grande do Sul, que não é novo. O problema é que o Rio Grande do Sul fragilizou a sua economia, a economia não consegue dotar a máquina pública de recursos capazes de manter o que essa máquina pública já foi em termos de qualidade e de responder a desafios novos, como infraestrutura. Então, a crise da economia agrava a crise da máquina pública, e a máquina pública, na medida em que não tem condições de agir, prejudica a retomada da economia. Essa crise não é nova. O fato de eu não ter, já há 12 anos, vida partidária e eleitoral, me permite dizer muito à vontade: acho que essa crise não pode ser atribuída a A, B ou C. E ela também não vai ser resolvida por A, B ou C. É um problema estrutural e coletivo.
Assista o vídeo com os conselhos de Britto para José Ivo Sartori
Como se resolve esse problema estrutural?
Gosto de comparar o Rio Grande do Sul com uma pessoa doente que não consegue conviver com a dor, não aguenta a dor, se queixa da dor e ao mesmo tempo recusa qualquer tipo de tratamento. Por que o Rio Grande é o único Estado grande do Brasil em que todos os partidos grandes passaram pelo governo? É o único. Por que é o Estado em que ninguém se reelege? É porque o Rio Grande do Sul é o único Estado onde nenhuma forma de enfrentamento dos problemas tem tido continuidade ou um horizonte de cinco ou 10 anos. O Rio Grande tem um problema que se agravou tanto que não vai se resolver em um período curto. É uma matemática que não fecha. E acho que aí a sociedade tem de se dar conta do seguinte: não vai haver solução fácil nem de curto prazo.
E no médio e longo prazos?
O que tem acontecido nas eleições e que me chama muito a atenção: as eleições no Rio Grande do Sul não elegem um governador, mas deselegem o outro. É o único lugar onde, em vez de você votar dando o mínimo de apoio para o programa que vai ser executado, você encerra um programa. Passada a eleição, o que você tem? Um programa divulgado, com apoio? Não. O programa não foi divulgado e não podia receber apoio, porque não foi divulgado. Então você só tem uma imensa expectativa. Talvez por isso a gente venha tendo, nos últimos tempos, uma espécie de rodízio entre dois tipos de governador, e eu não esqueço que fui governador e me coloco nessa crítica. Você tem um tipo de governador que resolve executar algum programa e, seja qual for o programa, é rejeitado porque a sociedade é avessa a praticamente qualquer tipo de tratamento. E o segundo tipo de governador que diz: bem, já que nenhum tratamento vai agradar, não vamos aplicar tratamento algum. Isso gera um agravamento da doença. O problema gaúcho não é a dívida nem a economia. É um problema psicológico e político. Psicológico porque o Rio Grande do Sul não está querendo aceitar que está enfermo e precisando de tratamento, e político porque é mais conveniente dizer que não existe o problema ou terceirizar a culpa, dizer que não é nossa.
Entenda a situação da dívida pública no Rio Grande do Sul
A cada eleição, o senhor é personagem. Acaba sempre sendo citado, com os candidatos dizendo que os problemas surgiram no seu governo. Cita-se por exemplo a renegociação da dívida, as privatizações, os pedágios...
O PT do Rio Grande do Sul tem uma fixação em mim que deveria ser melhor estudada. E o curioso é que essa fixação só se manifesta de quatro em quatro anos com a tentativa repetida, envelhecida e covarde de explicar todo o presente por uma única etapa do passado. Como não participo mais da vida partidária, não há réplica da minha parte. Mas cada vez mais há repúdio por parte da sociedade. Tenho a maturidade para não pensar que a gente só acerta e os outros só erram. No nosso caso, erros que possam ter sido cometidos em nome da coragem de tentar enfrentar a situação do Estado. Gosto mais desses erros do que do erro de não tentar nada ou de atribuir a um passado de 20 anos o que não se fez no presente.
Alceu Collares entregando o comando do Estado ao sucessor, que venceu Olívio nas eleições de 1994 (Foto: Mauro Vieira, BD, 01/01/1995)
Como se quebra esse círculo vicioso?
As eleições têm de passar a valer para eleger um programa e garantir a ele o mínimo de apoio. As eleições só têm servido para rejeitar um governador. Em vez de ser uma certidão de nascimento de um programa novo, é atestado de óbito de governo que se encerra. E o que você faz com atestado de óbito para construir os próximos anos? Pega aqui o caso do Sartori, que é uma pessoa íntegra, competente. O Sartori obteve apoio na eleição para qual tipo de programa?
Não se sabe.
Por que o Sartori foi prudentemente cauteloso durante a eleição? Porque ele não tem ideia sobre o Rio Grande do Sul ou porque, se ele demonstrasse, talvez não ganhasse? Existe espaço para que algum político sem tendências suicidas diga: "Olha, estamos com um problema e os tratamentos serão esses"? Se não houver espaço para que um político diga que existe o problema e que ele terá de ser tratado, a gente fica em um mundo que é um pouco de faz-de-conta.
O que o governador Sartori precisa fazer para não repetir os erros do passado?
Se a economia do Rio Grande do Sul não voltar a se dinamizar, o Estado vai ter de encurtar a ambição. Não podemos pedir para o Rio Grande renunciar a serviços de qualidade. Então, temos de manter o tamanho do Estado. Para manter o tamanho do Estado, temos de aumentar o tamanho da economia. A primeira questão que tem de ser discutida é qual é o novo papel do Rio Grande na economia brasileira? É para desistir do Mercosul? Temos o que ganhar com o Mercosul? Como compensar a distância em relação a São Paulo? A outra agenda é dolorosa, porque aí não é agenda de aumentar coisas, mas de discutir um conjunto de privilégios, de direitos que foram estabelecidos e que ninguém mais discute se eram justos ou não, ou se são legais ou não. É que eles se tornam praticamente impossíveis enquanto a economia não reagir.
Chegamos a um beco sem saída?
Não vamos conseguir sair disso sem que, lembrando uma frase do doutor Tancredo, "se faça um bom acordo". A definição do doutor Tancredo sobre bom acordo é uma maravilha: "Bom acordo é aquele em que todo mundo perde um pouco de forma justa". Porque um acordo em que todos ganhem é o que se tem brincado de fazer. E um acordo onde só alguns ganham é socialmente injusto e politicamente impossível. O acordo vai ter que ter, de um lado, engenhosidade, criatividade, ambição para reencontrar a vocação econômica do Estado, e, de outra parte, vai ter de ter um espírito pós-guerra. O Rio Grande, de alguma forma, é a Europa no fim da II Guerra Mundial. Para ter ali adiante um grande futuro, alguém, ou todos, tem que se sacrificar de alguma forma.
O senhor não gostaria que seus filhos crescessem no Rio Grande do Sul?
Hoje eles estão em São Paulo, porque trabalho aqui. Agora mesmo fomos a Porto Alegre para comemorar os 12 anos deles. Não dá para chegar no Rio Grande do Sul e não ter orgulho. Agora, não se consegue sustentar uma sociedade se ela só tiver orgulho do passado. Quais são as razões do presente para ter orgulho?
Com a mulher, Luciana Maydana, a mãe, dona Iolanda, e os trigêmeos, que estão com 12 anos (Foto: Arquivo Pessoal)
Quando foi governador, o senhor adotou um programa de privatizações que foi muito contestado. Hoje, o senhor defenderia a venda do Banrisul e das estatais que restaram?
Não defendo programa nenhum e muito menos privatização. Acho que o que tem lá, como o Banrisul, tem de ser mantido.
Em 1998, seus adversários diziam que o senhor tinha preparado o Banrisul para ser vendido no segundo mandato para assim reduzir os gastos com a dívida.
Isso é curioso e irônico, porque a dívida ficou maior pela manutenção do Banrisul, que se acusou de estar sendo vendido. Tem uma incoerência irônica nisso.
O que o governador Sartori deveria fazer no começo do governo?
Vou dizer a única coisa que talvez possa falar sobre o Sartori: acho que ele ganhou, com a eleição, o direito e o dever de, passados 40, 50 dias, chamar o Rio Grande, sem olhar para trás, sem criticar ninguém, como é do estilo dele, e dizer: "Senhores e senhoras, a situação é a seguinte: na previdência é essa, na infraestrutura é essa, na educação é essa. A soma das partes excede o todo...". E fazer no pós-eleição o que não aconteceu, e que o Estado não deixa acontecer na eleição, que é discutir a relação, discutir o problema. Quem sabe assim surjam programas para 10, 15 anos.
Conheça as propostas de Sartori para dez setores no Estado
O senhor inclui o aumento de impostos no pacote de alternativas para o Estado?
É uma solução duplamente impossível nesse momento. Primeiro, do ponto de vista político. Segundo, do ponto de vista do cenário nacional, com a economia estagnada.
Esse sentimento de não deixar que as coisas mudem, de apego ao passado, foi, na sua avaliação, o que prejudicou a sua reeleição?
Há uma frase muito boa que o Collor tornou infeliz: "O tempo é o senhor da razão". Me sinto cada vez mais tranquilo e feliz com o esforço que a gente fez. Acho que algumas coisas a gente cometeu o erro de propor antes do tempo.
O que, por exemplo?
Contrato de gestão, um governo em que, na área financeira e jurídica, não podia ter indicação política. Um governo em que era proibido indicar para a Secretaria de Segurança. Enfim. A segunda descoberta que o tempo me dá - a primeira é a consciência muito tranquila - e a segunda é a gente se desapegar da própria obra. No sentido de dizer que foi feito um esforço, tenho muito orgulho desse esforço, mas eu não estou com vontade de convencer ninguém de que esse esforço foi melhor do que o do Tarso, do Olívio, do Rigotto ou da Yeda e do Sartori.
Ainda hoje o Estado paga a conta das Leis Britto. Olhando pelo retrovisor, o senhor reconhece que foi um erro dar aquele aumento e suspender o pagamento sem aprovar uma nova lei?
Essas coisas sempre são complexas. Do contrário seria não dar nenhuma motivação ou possibilidade de crescimento para o funcionalismo. Quando você faz um processo de ajustar um pouco o Estado, fechar algumas coisas que a gente mostrava que não eram tão necessárias, isso é tido como um processo contra o funcionalismo e contra a máquina pública. Aí você constrói um mecanismo de reajuste, e esse mecanismo pegava um momento em que a economia crescia e tinha como limitante a continuidade do crescimento. Quando ela parou de crescer, tivemos de suspender. (O aumento foi aprovado pela Assembleia e suspenso quando estourou o limite da Lei Camata, antecessora da Lei de Responsabilidade Fiscal.)
Mas a suspensão provocou uma enxurrada de ações na Justiça. O governo errou naquele episódio?
Não tenho nenhuma dificuldade de conviver com crítica e dizer que algo está errado. Não acho que a gente tenha feito um governo perfeito, mas tivemos muita coragem.
Faltaram mudanças estruturais?
A gente tinha obsessão com a história de trazer indústria para o Estado. Porque seria a forma de aumentar a receita enquanto cortávamos as despesas que podiam ser cortadas.
Sartori indica os pedágios e as parcerias público-privadas como alternativas para realizar obras de infraestrutura. É o caminho indicado num Estado que rejeitou os pedágios com tanta veemência?
Não quero entrar na discussão se deve ter concessão ou não, se deve ter pedágio ou não. Mas, se for para ter, ninguém vai investir se essa não for uma política com garantias para daqui a 15 ou 20 anos. Para evitar que aconteça o que aconteceu. Existe espaço na sociedade e na política rio-grandense para que seja aprovada uma política de Estado para isso? Se não houver, todo mundo vai dizer: opa, estou assinando um negócio para 20 que pode durar quatro. Não vai se atrair a iniciativa privada se não se der um horizonte de tempo. Todo mundo sabe que no Rio Grande do Sul a política muda a quatro anos. Então, esse tipo de projeto precisa gerar um acordo em torno dele.
Olhando pelo retrovisor, qual foi o seu grande acerto e o seu grande erro?
O acerto da gente é sempre tentar. Foi um governo que não se omitiu de tentar. Talvez o erro tenha sido de, na vontade de aproveitar aquele bom momento que o país e o mundo viviam, ter iniciado um número de tentativas maior do que a capacidade da sociedade de compreender o que hoje é fácil de compreender e que lá atrás já aparecia, que é a fragilidade estrutural da máquina pública e da economia do Estado. Vinte anos depois, parece que não só a situação não mudou, como pode ter piorado.
Britto tornou-se nacionalmente conhecido em 1985, como porta-voz das notícias sobre a saúde de Tancredo (Foto: EBN, BD)
O senhor privatizou uma parte da CEEE. Ela ficou menor, mas com um passivo enorme. Não teria sido melhor vender a empresa inteira?
Mas a minha mãe já apanhou tanto com o que eu fiz, imagina se eu tivesse tentado fazer mais. Então deixa a dona Iolanda em paz (risos).
O senhor pensou em vender o Banrisul?
A gente tinha total convicção de que o Banrisul era essencial. Não estou querendo dizer se era certa ou errada, mas havia a convicção. E aí se criou uma situação muito curiosa. Havia uma enorme pressão do governo federal de que não haveria espaço, no futuro, para o Banrisul. Essa pressão ganhava um argumento poderoso porque, ao renegociar a dívida não mantendo o Banrisul, as condições de renegociação seriam extremamente mais favoráveis ao Estado. Acabamos apanhando do governo federal, porque não aceitamos a fórmula que era "mais vantajosa financeiramente", e ainda tivemos de ouvir durante muito tempo a bobagem de que a resistência para manter o Banrisul era uma forma de privatizar o Banrisul.
Leia as todas as últimas notícias de Zero Hora