Os nomes desta reportagem foram trocados a pedido dos entrevistados. Juan não se chama Juan. Isabel não é Isabel, e Esteban não é Esteban. Apesar do anúncio de acordo histórico entre Barack Obama e Raúl Castro, os cubanos têm medo de aparecer nos jornais. Falam de política, conversam com jornalistas estrangeiros, abrem suas vidas. Mas, antes que o último muro da Guerra Fria nas Américas caia, mantêm identidades ocultas. Temem patrões, dirigentes do Partido Comunista. Mas, mais do que isso, temem ser reconhecidos por colegas, amigos, medo do próprio medo.
Juan tem 36 anos, mora no bairro de Jaimanitas, a 500 metros do portão de acesso ao quartel da guarda de Fidel Castro. O comandante viveria em "algum lugar" ali ao fundo, propriedade apinhada de árvores de copas largas a 15 minutos do centro de Havana. Nascido em Santiago de Cuba, segunda cidade do país, Juan trabalha há quatro anos como segurança de um restaurante de Havana Velha. Nasceu em família comunista. O pai, Esteban, formou-se em engenharia agrícola em Havana, onde chegou com 15 anos. Encantou-se com a revolução, virou dirigente do partido. Por anos, presidiu estatais. Antes de se aposentar, voltou a Santiago, onde dirigiu uma cooperativa de produção de laranjas. Hoje, aos 63 anos, exerce, enfim, sua profissão: está perto da terra.
- Vivo de forma humilde, mas, graças a Fidel, tenho casa - diz Esteban a ZH, por telefone.
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Os companheiros da revolução formam uma casta superior. Alguns vivem em Havana, outros retornaram aos vilarejos de origem. Nos últimos anos, há preocupação em renovar os quadros da cúpula partidária. O acordo com os EUA põe o Comitê Central, órgão executivo do PC, diante de sua maior prova de sobrevivência: modular a convicção socialista com o tsunami capitalista que deve vir por aí.
Caçula de Estaban, Juan chegou a Havana aos 17 anos. Teve problemas com álcool em Santiago. Foi convidado a morar na capital. Entrou no exército por influência do pai. Foi expulso por indisciplina.
- Foi injustiça. Passo longe dos militares - diz, sem explicações.
Pai e filho não se veem há um ano. Com salário que recebe, de US$ 40 mensais, Juan não junta dinheiro para cruzar o país e ver Esteban. A cada 10 dias trabalhados, acumula um de folga. Junta as horas extras para tirar férias.
- Se comemos, não nos vestimos. Se nos vestimos não comemos - repete, ao falar do salário.
Dificuldades para sustentar crianças
Caderneta registra o limite de compras financiadas pelo governo (Foto: Rodrigo Lopes)
Em seu terceiro casamento, Juan sustenta uma filha de 15 anos, dois filhos, de quatro e um ano, e o enteado de 14. O salário no restaurante não basta. Em sua casa, de propriedade da mulher, mostra a libreta, caderneta onde estão listados itens como arroz, frango, sabonete, apenas para cubanos. A bodega se assemelha às farmácias dos anos 70 no Brasil: pé direito alto, paredes esverdeadas, poucos itens nas prateleiras. Você pede ao atendente uma lata de azeite, ele anota na caderneta e você sai com o produto. Financiado pelo governo, mas com limite anotado na libreta.
- Cada família só tem direito a meio quilo de arroz, meio quilo de frango por mês - queixa-se Juan.
Há duas moedas: o peso cubanos (CUP) e o peso conversível (CUC). O peso cubano é desvalorizado, utilizado para salário e artigos básicos. O CUC é usado no turismo. Um CUC é igual a 25 CUP. Para ir a um supermercado e comprar produtos de higiene, precisam de CUC. Alguns artigos são supervalorizados: xampu, sabonete, pasta de dente e papel higiênico. Com os pesos cubanos que ganha, Juan passou a viver da gorjeta no restaurante. É salário paralelo, quase o triplo do oficial. Quando não trabalha, toma emprestado o carro da irmã e atua como motorista de turistas. Em um dia, ganha o que levaria um mês no restaurante. Para não ser reconhecido, usa boné branco, bermudas e óculos de sol.
O sonho de viajar e voltar ao país
Graças ao que no Brasil chamamos de "bico", Juan compra carne de porco e gado de "conhecidos", pela metade do preço do mercado tradicional. No mercado ilegal, abastece a geladeira em "tempos bons", com muitos turistas.
- Se a polícia me pega com esta carne, posso até ir preso - diz.
Em semanas que recebe mais, Juan armazena comida. A sogra e a cunhada moram nos EUA, mas, ao contrário da maioria dos cubanos no Exterior, não enviam dinheiro para a família na ilha. Mais de 1 milhão de cubanos vivem nos EUA. Acredita-se que a remessa chegue, por ano, a US$ 2 bilhões - a um país com PIB de US$ 60 bi.
Juan andou preocupado. A filha Isabel completava 15 anos no Natal. Aluguel de salão, compra de vestido, comida aos convidados. Não sai por menos de US$ 800. Há quatro semanas, Isabel, que mora com a mãe, lhe telefonou:
- Pai, não quero mais o baile. Quero ir a uma danceteria. Mas das fotos não abro mão.
Ficou mais em conta. Juan comprou vestido e contratou fotógrafo. Exibia fotos que fez com seu celular simples no ensaio de Isabel, em vestido de seda verde musgo.
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Juan é um homem de hábitos simples - gosta de consertar a casa, assistir a um jogo de beisebol na TV e tomar uma "cana" (rum é mais barato que cerveja). Por conta da profissão, tem contatos: turistas. Prepara um quarto extra em casa para receber hóspedes.
Ao entrar na residência, que tem três quartos, quem recebe o visitante é Felipe, ainda não apresentado nesta reportagem. É o filho de quatros anos, "El loco", como diz Juan, forma carinhosa de descrever o menino agitado. Desinibido, Felipe aponta para a TV, que exibe a versão em desenho animado do seriado mexicano Chaves.
- Quero dar um Playstation a ele, porque os jogos agilizam o cérebro. É muito inteligente - gaba-se Juan, quando chega a mulher.
- Esta daí é comunista! - diz ele.
Ela pisca o olho. "Comunista" virou brincadeira familiar. Hoje, só Esteban é comunista na família.
- Este não desiste. Ganhou tudo de Fidel. Para mim, Fidel não deu nada - revolta-se Juan.
Com o acordo de Obama e Raúl, Juan planeja viajar. Quer ir a Brasil, EUA, México. E voltar. Para viajar ao Exterior, o cubano passa por processo burocrático e caro. Precisa ir à embaixada estrangeira para tentar o visto. Depois, é pedir permissão. Quem quer sair do país tem de receber convite formal de alguém no Exterior, transmitido pela embaixada cubana nesse país.
Juan ainda quer dar um computador a Isabel. Em Cuba, a máquina custa US$ 400, trazida do Exterior. Felipe pediu de Natal um carrinho Hot Wheels, que viu na TV a cabo. Não ganhará este ano. São promessas que Juan espera ver concretizadas com o acordo.
- Talvez possa aparecer no jornal com nome completo - sorri.