Campo de refugiados de Gulan, Afeganistão. Durante três décadas de guerra, ondas de afegãos fugiram dos seus lares ao longo das regiões da fronteira leste, muitos deles em busca de abrigo nas regiões tribais paquistanesas vizinhas.
No último verão, outra onda de refugiados passou por essa região. Só que ao contrário, são os paquistaneses, e não os afegãos, que estão fugindo da guerra em casa.
- Havia luta em todos os lugares - disse Sadamullah, um trabalhador que fugiu de Dattakhel com a sua família em outubro, um distrito das regiões tribais do Paquistão. - Havia bombardeios e forças militares atirando morteiros em nossas aldeias. Eles fizeram uma operação em nossa região, e mataram uma mulher.
Sadamullah, que como muitos membros de tribos locais não tem sobrenome, falava da ofensiva militar paquistanesa contínua contra as milícias islâmicas no norte da região de Waziristan. Os militares vêm desocupando o território da região desde junho, forçando um êxodo de pelo menos um milhão e meio de moradores. Até 250 mil deles desde então atravessaram a fronteira para o Afeganistão, segundo as autoridades.
As comunidades tribais de ambos os lados da fronteira são pachtuns, e muitos desses refugiados do lado paquistanês encontraram abrigo com parentes ou famílias misericordiosas do lado afegão, em grande parte, nas províncias de Khost e Paktika. Em alguns casos, os refugiados conseguiram arrendar ou tomar emprestado um pedaço de terra ou um complexo cercado para as suas famílias e alguns animais.
Todavia, os mais pobres - cerca de 3 mil famílias, segundo a agência de refugiados das Nações Unidas - estão assentados no Campo de refugiados de Gulan, um trecho de pedras brutas e de moitas de junco no distrito Gorbuz de Khost, a apenas alguns quilômetros da fronteira.
Tendas de lona se espalham na direção dos rochedos marrons do horizonte. As mulheres são enclausuradas atrás de telas frágeis, e as crianças, que representam 65% da população do campo, entram e saem correndo dos abrigos de lona. Os homens começaram a construir muros de lama ao redor das tendas em uma tentativa de oferecer melhor proteção contra o inverno que se aproxima.
A maioria das famílias veio a pé, e quase sempre fugiu às pressas com poucos pertences. Muitos contam a mesma história: um aviso público feito pelo exército paquistanês lhes dando três dias para evacuarem as suas casas, negociações desesperadas enquanto os anciões tentavam conseguir autorização para a permanência dos civis, e então o terror da artilharia e dos bombardeios aéreos das suas aldeias.
- Deixamos tudo - galinhas, patos, tapetes. Dormíamos no caminho nas montanhas- declarou uma viúva, Shakila Saidgi, que fugiu de sua aldeia em junho.
Ela contou que as forças paquistanesas começaram a bombardear sua aldeia em Waziristan às quatro da madrugada, atingindo a mesquita onde os homens estavam reunidos para a prece do amanhecer. Seu sobrinho estava entre os feridos. - Quando o sol nasceu, partimos- ela disse.
Os refugiados que chegaram nos últimos dias disseram que a operação, que dura meses, continuava e estava até se expandindo. Eles comentaram sobre aviões paquistaneses bombardeando as aldeias e do exército avançando.
- A luta era entre o Talibã e o governo, mas nossa aldeia foi bombardeada e é por isso que o povo se cansou e deixou a área- disse Musa Kalim Wazir, pastor da aldeia Tank no distrito de Dattakhel. As pessoas não ousavam retornar para suas casas, porque sempre que o exército era atacado pelos insurgentes, ele respondia bombardeando as aldeias próximas, segundo Wazir.
As autoridades afegãs, ainda lutando com uma série de problemas particulares, e não menos uma insurreição em andamento e milhares de refugiados internos, agora enfrenta uma carga a mais de 250 mil refugiados do Paquistão cuja presença está virando uma perspectiva de longo prazo.
- O inverno já chegou e todos os refugiados estão enfrentando a falta de assistência - declarou Muhammad Akbar Zadran, o governador do distrito de Gurbaz. - Um grupo de refugiados veio ao meu gabinete, e eles me contaram que várias doenças estavam se espalhando entre as crianças. Se elas não receberem tratamento urgente, então é possível que nos próximos dias testemunhemos uma situação precária.
Ele disse: - Todos os refugiados têm muitos problemas; eles chegaram aqui somente com a roupa do corpo, e deixaram tudo para trás. Se o governo e as pessoas não atenderem às suas necessidades, então, será um grande problema.
As últimas provações do Afeganistão ocorrem no meio de uma crise crescente de refugiados ao redor do mundo e uma escassez mundial de financiamento humanitário. A ONU solicitou 25 milhões de dólares para auxiliar os refugiados paquistaneses até o fim do ano, porém, as organizações assistenciais só arrecadaram 10 milhões, disse Bo Schack, representante do Afeganistão no Alto Comissariado para Refugiados da ONU.
- Existem tantas outras prioridades humanitárias, e ter refugiados de outro país dentro do Afeganistão não era o que ninguém realmente esperava. Mas desta vez estamos vendo números muito significativos atravessando a fronteira de uma só vez - ele disse em uma entrevista por telefone.
- Isso pode acabar sendo outro tipo de situação prolongada que claramente todos gostariam de evitar- ele declarou.
Para muitos dos refugiados, o Afeganistão representa um alívio não apenas do bombardeio, como também do governo draconiano do Talibã paquistanês e dos combatentes islamistas estrangeiros. No norte de Waziristan, os grupos de milícia em grande parte tinham expulsado toda liderança civil ou tribal, em um reinado brutal que deixou a maioria da população local alienada e assustada.
- Se não ajudasse o Talibã ou os estrangeiros, você era morto- disse Mushtaq, um refugiado que não tem sobrenome.
Outro refugiado, que não quis revelar o nome por medo de represália, descreveu anos de inferno desde que as milícias assumiram o controle mais firme no norte de Waziristan.
- Eles começaram a molestar as pessoas, e todos ficaram desiludidos. Depois, começaram a matar as pessoas e acusá-las de serem espiões do governo. Estavam tentando amedrontar. Eles costumavam usar máscaras no rosto e arrastavam qualquer um que quisessem levar para sua base - O medo levou alguns a se juntarem aos militantes por proteção. - Eles criaram um ambiente de forma que pudessem atrair as pessoas mais facilmente. Quando se juntava a eles, essa pessoa ficava poderosa. Alguns dos meus parentes se juntaram.
Nesse ambiente, a maioria da população apoiava a ideia de uma ofensiva militar. No entanto, poucos disseram confiar na força militar paquistanesa, e os temores foram confirmados quando viram os militantes escaparem, antevendo a ofensiva e o bombardeio.
- A operação em si é correta, mas a forma como a conduzem é errada, e está me prejudicando mais do que os combatentes. Minha casa, minha aldeia e minha terra foram danificadas. E eu perdi tudo - disse em julho Umar Khan, um ancião tribal que representou os refugiados nas reuniões com as autoridades afegãs.
No final de outubro, ele disse não acreditar no número do governo de centenas de talibãs mortos. Porém, alertou que os militares ainda estavam matando civis na operação.
- O Waziristan foi completamente destruído pelas forças militares- ele disse.
Os afegãos há muito acusam o Paquistão de dar abrigo aos militantes que buscam matar o governo e as forças internacionais no Afeganistão. Agora, a preocupação é que alguns desses militantes ainda consigam operar, e queiram se infiltrar entre os refugiados.
Os refugiados reclamam desde o começo de que os militantes escaparam antes deles e que as autoridades dizem que alguns se estabeleceram no lado afegão da fronteira. A questão tem sido um ponto de tensão entre os governos do Afeganistão e do Paquistão.
- Se nosso governo e a comunidade internacional não ajudarem essas pessoas a tempo, então, alguém - em particular o Talibã - terá a chance de influenciar essas pessoas - alertou Zadran.