Nestes tempos em que a extrema direita europeia se insinua em meio a protestos dos indignados pelas ruas de diversos países, os portugueses deram solenidade a uma efeméride. Na última sexta-feira, dia 25, passaram-se 40 anos da Revolução dos Cravos. A revolta depôs o regime salazarista, de Antonio de Oliveira Salazar, ditador civil que liderou período de intensa repressão em Portugal. Ainda era rescaldo, nos anos 1970, do fascismo que tomara conta do continente anos antes, na Alemanha, na Itália e na vizinha Espanha. Houve, na sexta, eventos no parlamento e no Largo do Carmo, de Lisboa, promovidos pelo presidente da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço, um dos rebeldes da época.
Salazar morreu em 1970. Fora substituído em 1968 por Marcello Caetano, que começou uma tímida abertura. O salazarismo, sob Salazar ou sob Caetano, resistia a movimentos independentistas nas persistentes colônias portuguesas da época, como Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
Em 25 de abril de 1974, essa situação era insustentável. A ditadura já durava 41 anos. Colônias haviam entrado em desuso desde o fim da II Guerra Mundial. Além da repressão portuguesa, tratava-se de um anacronismo. A revolta militar, feita de forma pacífica ("as flores suplantaram as armas", diziam), foi recebida pela população com a distribuição de cravos para os soldados rebeldes. Daí o nome e o símbolo.
António de Spínola, o presidente que assumiu no lugar de Caetano, começou o novo regime pondo fim à polícia política, implementando o pluripartidarismo e estatizando empresas. Em 1976, foi aprovada nova Constituição, fruto da maioria socialista, que enterrava institucionalmente o salazarismo. Em Portugal, os 40 anos de democracia são festejados como a conquista de progressos sociais, liberdades individuais e solidificação institucional. Foi deixada para trás a visão vinculada ao imperialismo que teve os ciclos asiático, americano e depois africano. Hoje, o país geograficamente mais ocidental da Europa, voltado para o Oceano Atlântico e vocacionado a singrá-lo, faz a opção continental.
- Viramo-nos para a Europa a fim de sermos relevantes no mundo. Mas isso faz também com que sejamos dependentes - diz o historiador português Luciano Amaral, indicando um dilema atual.
O episódio que mudou o eixo português foi, pois, um momento decisivo. Para o país e para a Europa.
Entrevista - Ruy Castro: "Se aconteceu lá, podia acontecer no Brasil"
Leia trechos da entrevista de Ruy Castro, concedida por e-mail, sobre sua vivência na Revolução dos Cravos:
Zero Hora - O senhor estava em Portugal naquele 25 de abril. Como foi?
Ruy Castro - Ninguém esperava por aquilo, nem os jornalistas. Eu frequentava o Pabe - assim mesmo, com "a" -, um pub aonde iam os repórteres estrangeiros. Uma semana antes do 25 de abril, ninguém falava na possibilidade de um golpe. O povo, assim que percebeu o que estava acontecendo, aderiu entusiasticamente.
ZH - O fim do salazarismo influenciou o arrefecimento de outros regimes ditatoriais, como o do Brasil em que Geisel sucedia Médici?
Castro - Ah, sim. A situação na vizinha Espanha, por exemplo, ficou periclitante. Franco morreria alguns meses depois (20 de novembro de 1975), mas o 25 de abril abalou o franquismo. Já para o Brasil, o governo militar, por um lado, gostou. Sabia que, com isso, viria a independência das colônias portuguesas na África, e ele poderia passar a negociar diretamente com elas, sem passar pela metrópole. Em 1973 - antes do 25 de abril -, Médici já tinha reconhecido a independência unilateral da Guiné-Bissau, de olho no comércio que o Brasil faria com essa ex-colônia portuguesa, cujo movimento de libertação era financiado pela China.
ZH - O senhor frequentava o bar do cinema Apolo 70. No mesmo bar, houve reuniões dos rebeldes. Ficou sabendo disso anos depois, pelas memórias do brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho (líder da revolução). Em perspectiva, hoje, o senhor se lembra da movimentação que ocorria naquele ambiente?
Castro - O Apolo 70 era dos poucos lugares em Lisboa onde se viam jovens - digo, rapazes e moças da minha idade, 25, 26 anos. Os capitães e majores que fizeram a revolução não tinham muito mais do que isso. Havia uma certa ebulição. Mas o regime era muito fechado, não se discutia política abertamente em lugares públicos, víamos pides (agentes da Pide, Polícia Internacional de Defesa do Estado) por todo lado. Hoje o Apolo 70 é uma galeria comum, afundada no meio dos prédios. Não significa mais nada.
ZH - O senhor conta ter conhecido um sujeito que sumiu ao denunciar um, dois e depois três pides em troca de recompensa. O novo regime estranhava alguém tão bem informado?
Castro - A Pide era uma mistura de SNI com DOI-Codi. Alguém que se apresentasse como informante e denunciasse vários pides é porque certamente tinha sido informante da Pide e conhecia muitos deles. Donde, deveria ir preso.
ZH - Qual seu sentimento, à medida que o Brasil vivia o drama que vivia?
Castro - Me deu a sensação de que, se, por incrível que parecesse, tinha acontecido lá, podia acontecer também no Brasil.
ZH - Como foi a transição lusa?
Castro - Voltei para o Rio no final de 1975, tinha uma proposta do Jornal do Brasil. Pouco antes de eu vir embora, a extrema esquerda, liderada pelo Otelo, desbancou os comunistas do Vasco Gonçalves. E, em novembro, ela também foi desbancada pelo pessoal de centro, do Ramalho Eanes. Ali, sim, começou a transição democrática, sem os extremismos do período 1974-75.
ZH - O senhor conta que conversava com o pai de uma amiguinha da sua filha enquanto as meninas andavam de balanço na praça. Puxava conversa sobre política, mas ele silenciava. No dia da revolução, o viu em meio aos rebeldes. O senhor tentou achá-lo, depois?
Castro - Não, nem tentei. O pessoal do MFA (Forças Armadas) era muito fechado. O homem era tipicamente um jovem oficial recém-retornado da África e, como a maioria de seus colegas, ansioso para acabar com aquela guerra estúpida e perdida contra os movimentos de libertação de Angola e Moçambique. E o jeito de fazer isto era derrubando o governo.
ZH - O senhor se lembra que reação teve ao ouvir pela primeira vez Tanto Mar, do Chico Buarque, sobre a revolução? Mandou um cravo para Chico?
Castro - Uma amiga minha comprou o disco e levou para mim em Lisboa. Ouvi e achei bom. Mas o que realmente me emocionou foi comprar, menos de um mês depois do 25 de abril, uma edição portuguesa de Missão em Portugal, o grande livro do nosso embaixador Álvaro Lins que, em 1958, deu asilo na embaixada de Lisboa ao General Humberto Delgado, arqui-inimigo do ditador Salazar e depois morto pela Pide. Até então, este livro estava proibido em Portugal.
ZH - Hoje, há protestos de rua em todo o mundo, pedindo mudanças, e a extrema direita tem vencido eleições na Europa. O senhor acredita que a democracia precisa se aperfeiçoar para evitar o avanço da extrema direita?
Castro - É, parece que os governos, tanto de direita quanto de esquerda, estão fracassando. Mas uma coisa é você ir para as ruas contra uma ditadura e arriscar o pescoço. Outra, bem mais fácil, é protestar numa democracia, não?