Charles Chaplin morreu dormindo, em 1977, aos 88 anos. Carlitos comemora seu centenário no dia 7 de fevereiro esbanjando vitalidade. O adorável, divertido e melancólico Vagabundo que Chaplin consagrou no cinema não precisou fazer uso da palavra para conquistar o mundo e eternizar-se como uma das figuras mais icônicas da história moderna. Foi doloroso para Chaplin despedir-se de Carlitos. Seguiram seus caminhos. O do gênio criador permaneceu iluminado até chegar a seu fim lógico e sereno. O da genial criatura abriu-se ao infinito, pois Carlitos será eternamente movido a gargalhadas e lágrimas.
O vagabundo
Carlitos era inalcançável a seus perseguidores porque assim o era o menino Chaplin quando corria nos becos de Londres, por entre, na sua definição, "as mais baixas camadas da sociedade". Quando o Vagabundo brigava por um pedaço de pão, exibia a força e o desespero genuínos de seu criador. Essa transmutação de Chaplin em Carlitos inspirou alentadas análises e estudos acadêmicos. Para o crítico e cineasta francês François Truffaut, Chaplin não foi o único diretor a encenar a fome, mas o único a conhecê-la.
Astro emergente do vaudeville britânico, Chaplin desembarcou em Hollywood em 1913, contratado em dezembro pela Keystone Films. Foi seduzido pelo dinheiro antes impensável, mas detestou o resultado de sua estreia, no curta de 10 minutos Making a Living (lançado no Brasil como Carlitos Repórter, embora o personagem não existisse ainda), exibido em 2 de fevereiro de 1914. Com a arrogância dos novatos brilhantes, disse que podia fazer melhor. Dias depois, se apresentou para rodar Carlitos no Hotel caracterizado como o Vagabundo - o filme estrearia após Corrida de Automóveis para Meninos, que apresentou o personagem ao público - e começou a dar pitacos aos diretores veteranos.
Em sua autobiografia, Minha Vida, Chaplin lembra que buscou no guarda-roupa do estúdio um figurino que colocasse peças em contraste: calças largas e casaco apertado, sapatos enormes e chapéu-coco pequeno, além da bengala e do bigodinho. Diz que não sabia bem como seria o personagem. Mas bastou a câmera rodar para Carlitos tomar as rédeas do destino de Chaplin e ganhar vida própria.
Alcance mundial
Chaplin percebeu que só teria êxito em Hollywood com o controle criativo de seus filmes. O imenso sucesso de Carlitos nos EUA e na Europa lhe garantiu esse direito sem demora. Ainda em 1914, passou a escrever, a dirigir e a escolher sua equipe. Em 1916, já assinava como produtor. Era então o artista mais bem pago do mundo. Em 1917, ganhou US$ 1 milhão da First National para produzir oito filmes. No ano seguinte, inaugurou seu estúdio.
A autonomia permitiu a Chaplin trocar o método de trabalho industrial pelo artesanal. Ainda que trabalhasse sem roteiro, cada plano era previamente esmiuçado nos aspectos físicos e técnicos e rodado exaustivamente até o mestre ficar satisfeito. Esse esmero, a obsessão em fazer Carlitos espelhar situações vividas pelas plateias que lotavam os cinemas em busca de alívio para a dureza do dia a dia, era recompensado com fama, fortuna e adoração sem precedentes na história do entretenimento.
Os curtas e médias-metragens ficaram pequenos para Carlitos. O Garoto (1921) foi seu primeiro longa. Na sequência, mais obras-primas: Em Busca do Ouro (1925), O Circo (1928), Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936), no qual Carlitos sai de cena, em pleno apogeu do cinema falado, tão mudo quanto entrou. O Vagabundo conviveu por quase 10 anos com a era do cinema falado. Chaplin defendia que colocar palavras na boca de Carlitos tiraria sua empatia universal. O personagem seria para sempre um cidadão do mundo, inspirando, com sua inabalável e divertida luta por liberdade, igualdade e fraternidade, crianças e adultos, pobres e ricos.
De herói a vilão
Chaplin brilhou como ator, diretor, roteirista, produtor e compositor, mas nunca deixou de ser o mestre da pantomima. Carlitos apareceu como soldado, padre, homem casado, milionário, garimpeiro, bêbado, boxeador e operário, sem nunca deixar de ser, em sua essência, o Vagabundo buscando um lugar na sociedade, sem jamais resignar-se com a indiferença e o desprezo alheios. Confrontava a autoridade, fosse ela o policial que lhe atazanava ou o grã-fino que lhe esnobava.
Se como artista genial Chaplin administrou sua trajetória sem amarras, no plano da vida privada enfrentou duros reveses. A notória preferência por mulheres jovens o fez alvo de escândalos. Enfrentou dois divórcios turbulentos que fizeram a festa da imprensa. A recusa de Chaplin em adotar a cidadania americana e a abordagem social e humanista de seus filmes fizeram políticos conservadores, já nos anos 1930, classificá-lo como simpático ao comunismo e propagador de um sentimento antiamericano. Como se tivesse perdido seu escudo de proteção ao se despir de Carlitos, Chaplin viu a hostilidade nos EUA crescer após a II Guerra - logo ele, um visionário que alertou sobre o perigo de Hitler em O Grande Ditador (1940) -, ao ponto de ele abandonar o país em 1952 para viver na Suíça. Chaplin teve oito de seus 10 filhos com Oona O'Neill, a quem conheceu com 53 anos - ela tinha 18.
Chaplin, como Carlitos, nunca baixou a guarda. Em seu antepenúltimo filme, o melancólico Luzes da Ribalta (1952), sintetizou numa fala do decadente palhaço Calvero o mantra de sua vida: "Não me importa o sucesso, só não quero fracassar".