O drama da família Winck se resume a um jogo de palavras de pouca inspiração, uma rima pobre: Beatriz, 77 anos, está desaparecida em Aparecida. A dona de casa de Portão sumiu na Capital da Fé, em 21 de outubro, levada pelo mar de gente que a Via Dutra despeja na cidade do Vale do Paraíba todos os finais de semana - em um domingo típico, nos meses finais do ano, o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida recepciona mais de 100 mil romeiros.
Há 42 dias, o aposentado Delmar, 82 anos, marido de Beatriz, e o técnico químico João Carlos, 54 anos, um de seus quatro filhos, mantêm suas vidas em suspenso. Delmar jamais retornou para casa desde o amanhecer de 20 de outubro, quando o ônibus de excursão partiu, às 6h, para a segunda viagem do casal à cidade paulista. O primogênito chegou no dia seguinte, carregando o desejo de uma solução rápida na mala com pouca roupa. Desembarcou em Guarulhos e pagou R$ 500 pelos 150 quilômetros rodados de táxi. Está em Aparecida até hoje.
- Não vou embora sem encontrar a minha mãe. Posso até perder o emprego - promete João Carlos, que é questionado sobre a possível data de regresso sempre que fala com a mulher e as duas filhas, deixadas em São Leopoldo.
João Carlos e o pai dividem o mesmo quarto do Hotel Cathedral, com vista para o principal cenário do pesadelo que protagonizam. Basta atravessar a rua para entrar no maior santuário do mundo dedicado a Maria, mãe de Deus. O complexo com basílica (capacidade para até 30 mil pessoas), capelas, museu, centro de eventos e hotel se esparrama por 23 mil metros quadrados de área construída. No centro, o Ponto de Encontro oferece ajuda a crianças e adultos que, em um breve descuido, desgarram-se de seus grupos - nos dias de maior movimento, são registradas até 400 ocorrências, geralmente elucidadas em poucas horas.
"Atenção, dona Beatriz Joanna Von Hohendorff Winck", anunciou o locutor pelo sistema de som naquele domingo em que o endereço santo virou maldito, pouco depois de Delmar comprar três DVDs na Casa das Velas, onde os fiéis podem incrementar as graças encomendadas com velas de dois metros de comprimento. Na fila do caixa, o marido olhou para trás e avistou Beatriz, aguardando-o na porta da loja. Delmar pagou a conta e tomou a direção da saída. Observou à volta, subiu degraus da escadaria da catedral para ampliar o campo de visão. Uma companheira de excursão comentou ter passado por ela, a caminho do hotel, alegando cansaço.
- E ali começou a minha tragédia - recorda o aposentado, quando as lágrimas interrompem o relato pela primeira vez. - Eu era um cara muito durão. Aprendi que homem não chora, mas amoleci. Minha vida agora é comer e chorar - conta, erguendo os óculos para secar o rosto.
Delmar se atrapalha com os tempos verbais ao narrar as alegrias de um casamento de 57 anos. Hesita, não sabe se diz "Beatriz está" ou "Beatriz estava" - o drama dos familiares de um desaparecido é impreciso. Não podem viver o luto da perda enquanto se debatem com tantas suposições. Em morte, ninguém admite falar. Pai e filhos estão seguros de que Beatriz está vagando pelas redondezas, desmemoriada, vítima da falta de referências que desorienta quem sofre uma isquemia cerebral - possibilidade aventada por um dos médicos que acompanha Beatriz. Pouco antes de embarcar, ela começou a tratar uma arritmia que descompassava a batida do coração. A falta do remédio, somada ao estresse de uma tarde quente em meio à multidão, poderia explicar o "apagão".
- A gente imagina que ela esteja na casa de alguém. Mas será que esse alguém não tem um radinho? Será que esse alguém não tem que sair para comprar feijão? - questiona-se Delmar.
Uma rede de solidariedade envolve os Winck, somando esforços. Voluntários aparecem para ajudar a colar 8 mil cartazes em Guaratinguetá, Roseira, Potim, Campos do Jordão e outras localidades próximas. Enquanto Delmar aguarda no hotel, João Carlos coordena os parentes que vêm e vão, revezando-se entre Portão e Aparecida, e quem mais estiver disposto a aceitar a rotina extenuante de abordagem a comerciantes, taxistas, ambulantes, motoristas de ônibus, moradores de rua e viciados em crack que buscam abrigo sob as pontes do Rio Paraíba. Batem palmas na frente das residências, chamam a atenção com "ô de casa!". João Carlos estima fazer cem vez por dia a mesma pergunta:
- Vocês viram essa senhora por aqui?
Fotos: Tadeu Vilani/Agência RBS
Alguns dias, buscas vão até a madrugada
Delmar se enverga com o fardo da culpa que não é de ninguém: e se essa viagem nunca tivesse se realizado? Nas primeiras duas semanas após o sumiço, refez o mesmo trajeto diariamente: atravessou o pórtico principal do santuário, circulou pelas dezenas de lojas de lembrancinhas e badulaques que assediam os visitantes logo na entrada, caminhou sem pressa, guiando-se pela torre do relógio em direção à catedral. A multidão se movia a cotoveladas naquele domingo, o telhado azul da cúpula rebatendo o sol e dando a impressão de multiplicar os graus do calor que avariava os sentidos.
- Sempre tive a esperança de que ela estivesse aqui me esperando. Pensava que estaria sentada num banco da igreja - confessa Delmar, que se aproxima de qualquer senhora grisalha, tentando reencontrar o rosto da mulher.
Na semana passada, o aposentado pensou em voltar para casa. Incomoda-se com a inércia, tenta vencer as horas lendo jornais. Opera um escritório improvisado na recepção do hotel, de onde contata a prefeitura - que cedeu um carro com motorista -, rádios e jornais locais, a delegacia. Cogitou que poderia ser mais útil cuidando da plantação de aipim e verduras que mantém para o consumo doméstico, incrementando as receitas da culinária alemã preparadas por Beatriz. Reservou a passagem para o sábado 24, mas foi detido por uma súplica do filho mais velho.
- Eu preciso de ti, pai - pediu João Carlos.
Delmar e João Carlos aprontam o chimarrão por volta das 6h30min, não importa a hora em que tenham adormecido. Algumas noites de buscas se estendem até a madrugada, dependendo do tempo que leva descartar pistas e probabilidades colhidas ao telefone, muitas vezes em ligações a cobrar - moradores asseguram ter visto Beatriz andando pela estrada, pescando no rio, descansando no banco da praça, deitada na calçada. Os dois tomam café e decidem o roteiro para as horas seguintes. João Carlos tem pressa e quer sair antes das 8h, mas atrasos dos companheiros que ajudam na investigação informal acabam sempre retardando a partida. Costuma voltar ao meio-dia para acompanhar o pai no almoço. Ao entardecer, nova pausa para o banho e o jantar, antes do terceiro turno de andanças.
- Meu primeiro pensamento ao acordar é: "Hoje nós vamos encontrá-la". O último, de noite: "Mais um dia de mãos vazias" - resume o químico.
Aparecida, com 35 mil habitantes, sobrevive às custas da popularidade da santa que lhe empresta o nome. É um lugarejo temático, onde quase todo hotel, loja e restaurante é batizado com inspiração religiosa: Papa, Santa Catarina, Reis Magos, Cantinho do Céu, Santo Graal. O comércio é dominado pela informalidade, e barracas da feira livre montadas no meio da rua não se limitam a vender terços com a imagem dos milagreiros mais populares.
Uma procissão de desvalidos se sobressai entre as dezenas de milhares de turistas: homens e mulheres de cadeiras de rodas, amputados em muletas, crianças com danos cerebrais. Nos finais de semana, Aparecida ganha ladrões e engarrafamento.
- Isso aqui é uma bagunça! Os padres mandam erguer os braços, mas se alguém ergue os braços está ralado - comenta o padre e jornalista Cesar Moreira, diretor-geral da Rádio e TV Aparecida, temendo a rapidez dos batedores de carteira.
Cartazes começaram a sumir das paredes
Flávia, 48 anos, filha de Beatriz, chegou há pouco mais de uma semana. Em direções opostas, os irmãos partem com suas pequenas comitivas. Um grupo de escoteiros, respondendo a um apelo divulgado no Facebook, ofereceu seus préstimos. Liderados pelo microempresário Carlos Rufino Guimarães, 52 anos, os adolescentes se apresentam de uniforme e lenço no pescoço para a ronda noturna, munidos de pacotes de biscoito, bússolas e GPS. Trocam mensagens em código pelos rádios portáteis, abafadas pela chiadeira do sinal ruim, e parecem super-heróis precoces, embrenhando-se em matagais com a missão de gente grande.
- Meu neguinho, dá uma força aqui - pede Rufino, iluminando o cartaz de "Procura-se" com a lanterna, ao abordar um andarilho às 20h de quinta-feira, pouco antes de um vendedor de chinelos garantir ter visto dona Beatriz sentada em um banco da rodoviária naquela manhã.
Disseminou-se, em pelo menos duas ocasiões, o boato de que a aposentada fora encontrada. Cartazes começaram a sumir das paredes. Uns dizem que a censura é obra de fiscais da prefeitura, outros culpam defensores da Igreja Católica, tentando evitar máculas à imagem de Aparecida. O prefeito Antônio Márcio de Siqueira (PSDB), negou, por telefone, de Buenos Aires, orientação nesse sentido. ZH tentou contatar Darci Nicioli, arcebispo auxiliar de Aparecida, única autoridade ligada ao santuário com permissão para se pronunciar sobre o caso, e Jair Ramalho, delegado do município, e não obteve resposta às solicitações de entrevista.
Com bolhas nos pés, Flávia dá vazão ao desespero questionando a religiosidade do pai.
- Adiantou alguma coisa? A vida inteira na igreja, e ela foi sumir justo dentro da basílica. Adiantou, pai? - lamenta a filha, sempre carregando uma sacola cheia de cartazes com a foto de Beatriz, a dona de casa tímida e vaidosa.
Na sexta-feira, Delmar recorreu mais uma vez à Rádio Aparecida. Queria solicitar um reforço na divulgação dos seus telefones de contato.
- Eu sou o esposo da desaparecida - apresentou-se ao porteiro, assumindo o título ingrato com que tantos se referem a ele.
Logo foi recebido pelo gerente da emissora, que repetiu o questionário a que os Winck já se habituaram a responder, onde quer que estejam.
- Quando alguém desaparece, o corpo aparece, no rio ou em algum lugar - afirma o gerente Antônio Celso Pinelli, utilizando a palavra - "corpo" - que Delmar jamais pronuncia.
O aposentado desvia a atenção, vai da conversa de súbito fúnebre para a TV sintonizada na missa, onde o coral entoa Hosana nas Alturas. Despede-se com a promessa de que um novo alerta entrará no noticiário das 11h.
- Não posso abandonar o campo, ir embora - resigna-se.
Delmar dá mais uma passada no santuário antes de voltar ao hotel, onde duas garrafas de vinho tinto já foram reservadas para o brinde que celebrará o retorno de Beatriz. Pensando nessa data, Flávia solicitou um quarto com cama de casal ao se registrar para a hospedagem. Planeja passar a primeira noite de sono tranquilo dormindo junto da mãe.