O lugar onde Giuseppe Garibaldi ardeu em desejos por um amor proibido segue bafejado pela brisa que sopra desde a Lagoa dos Patos. Os casarões de uma irmã e de uma sobrinha do general Bento Gonçalves, os quais o corsário italiano frequentava respeitosamente, mas sem desgrudar os olhos de uma jovem, a recatada Manoela Ferreira, continuam como testemunhos dos perigos e das paixões que sacudiram aquele conturbado 1839 - o quarto ano da guerra civil.
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O que não resistiu ao tempo foi o estaleiro, situado às margens do Rio Camaquã, perto da foz com a lagoa, onde Garibaldi e seus marinheiros, mais os negros das estâncias, construíram os lanchões de combate. No entanto, há planos para refazer a oficina e o arsenal. A iniciativa é de Raul Justino Ribeiro Moreira, 49 anos, profissional de marketing em Porto Alegre.
A planta do estaleiro está pronta. Tetraneto de Bento Gonçalves, Moreira valeu-se de arquitetos ligados ao patrimônio histórico na elaboração. Inspirou-se em uma imagem do que restava do galpão, captada em 1896 por John King, descendente de ingleses com ateliê de fotografia em Rio Grande. Moreira já depositou no local telhas, tijolos e outros materiais que serão usados na obra.
- Queremos que seja autêntico e esteja aberto à visitação - anuncia Moreira, proprietário da área do futuro estaleiro.
O parque temático do que seria a marinha farroupilha ficará à beira do Rio Camaquã, próximo à Estância da Barra, onde morava dona Antônia, irmã de Bento. Garibaldi se hospedou no casarão, que desponta entre figueiras centenárias.
Amor platônico afligia o italiano
O que aconteceu no estaleiro há 173 anos, o próprio Garibaldi se encarregou de revelar. Nas memórias que ditou a Alexandre Dumas, descreve as "magníficas planícies" de Camaquã, a hospitalidade nas casas de Antônia (irmã de Bento) e de Ana (sobrinha), a construção dos navios e os namoricos com Manoela. Investido como tenente-capitão da República Rio-Grandense, chegou ao lugar com 30 marujos europeus, a quem elogiava como "legítimos camaradas dos mares".
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Os barcos, equipados com pequenos canhões, ficaram prontos em dois meses. Nas incursões piratas pela Lagoa dos Patos - rota comercial entre Rio Grande e Porto Alegre -, Garibaldi passou a saquear embarcações civis. Tanto molestou o Império que foi atacado pelo coronel Francisco Pedro de Abreu, o célebre Moringue, em abril de 1839.
O italiano narra que tomava mate quando foi surpreendido pelos tiros de mais de cem imperiais. Havia15 farrapos ao redor do estaleiro, os outros estavam a trabalho, longe dali. Garibaldi teve o pala perfurado por um golpe de lança, mas alcançou os fuzis e se pôs a atirar com precisão.
A perspectiva era sombria. Na entrevista com Dumas, Garibaldi admite que Moringue era o "melhor chefe expedicionário" dos inimigos. Porém, a sorte estava com os rebeldes naquele confronto. Um negro, o Procópio, acertou um tiro no braço do coronel imperial, que, em dúvida sobre o número de rebeldes, recuou deixando 15 mortos.
E Garibaldi colheu os frutos da valentia. Quando dona Antônia ofereceu uma festa na Estância da Barra, em homenagem aos marujos, ele notou que Manoela empalidecera, mostrara-se aflita por saber "sobre a minha saúde". A donzela estava prometida a um filho de Bento Gonçalves, mas isso não impediu que o condottieri se declarasse caído de amores, ainda mais ao vê-la perturbada:
- Para o meu coração, uma vitória mais doce que o sangrento triunfo conquistado. Oh, bela moça do continente americano! Enobreceste-me e fui feliz por pertencer-te, do modo que se fez possível, em pensamento - conta nas suas memórias.
Baú farrapo
A proprietária do casarão da Estância da Barra, Maria Helena Wagner Rossi, 59 anos, costuma passar os finais de semana no local com a família. Gosta de descansar das atividades como professora de Artes na Universidade de Caxias
do Sul (UCS).
- Tem uma atmosfera diferente aqui, não sei bem. A gente esquece dos problemas - conta ela.
O casarão e o entorno está com a família Wagner desde 1937. A área do futuro estaleiro, ao lado, pertence a Raul Moreira.
Hóspedes recentes do casarão relatam a visão de uma senhora idosa e tristonha, flutuando pelos cômodos como uma fantasma boazinha. Imaginam que seja a desventurada Manoela, sempre à procura do amado Garibaldi. Ela nunca teria se casado depois de conhecer o italiano, embora fosse prometida a um filho ou sobrinho de Bento Gonçalves.
Os lanchões farrapos foram construídos de forma improvisada. Garibaldi narrou que dois ou três carpinteiros talhavam a madeira, enquanto um mulato - provavelmente serviçal da estância - forjava o ferro, desde os pregos até as argolas dos mastros.
Garibaldi tinha carta de corso para atacar e pilhar embarcações imperiais, ao longo do Litoral Sul. De tudo que amealhasse, metade seria entregue ao governo da República Rio-Grandense.
RECONSTRUÇÃO
Às margens do Rio Camaquã, Raul Moreira, proprietário da área onde ficava o antigo estaleiro, planeja refazer o galpão e a oficina; tijolos para a obra já foram comprados.