Já estou com saudade.
Foram 52 cidades gaúchas retratadas num ano. Percorremos 14.590 quilômetros, o equivalente à distância de Porto Alegre a Cabul, no Afeganistão.
Nove mil fãs em nossa página no Facebook, mais de mil mensagens dando dicas e roteiros para visitar. Tantos amigos, tanta cumplicidade, tantas gargalhadas.
Não mexi no meu passaporte, mas atravessei as culturas italiana, polonesa, alemã, suíça, africana, indígena, açoriana e japonesa pelo território gaudério. Viajei o mundo de nossas raízes.
A vontade era nunca terminar. Nunca se despedir.
Não posso dizer que conheço o Rio Grande, posso dizer agora que não conheço o Rio Grande. A humildade é ambiciosa. Vi o suficiente para lamentar que ainda falta muito para ver. Quanto mais vejo, mais quero enxergar.
O pampa é a gula do olhar. Coxilha chama coxilha que chama coxilha e já estamos na fronteira.
Eu me reinventei, me esclareci em cada pórtico.
Acordei minha infância, hábitos interioranos que nem me lembrava, mas que estavam intactos em mim.
Como resistir a nossa mania de transformar o fogão em mesa? Só aqui a chaleira é areada, cintilante, com primazia de cristaleira. Repousa no pano de prato como um troféu. E a casa somente estará arrumada no momento em que a chaleira é posta no tampo de vidro. Antes não.
O gaúcho tem manias incríveis. Gosta de apresentar a cozinha aos visitantes. Faz questão. É a sua verdadeira sala de estar. Algo que qualquer corretor do interior desvenda no berço. Primeiro, mostre a cozinha, em seguida o resto das peças.
Eu me emociono com o mínimo. Ao localizar, por exemplo, uma espumante em destaque na prateleira, para ser aberta num dia especial. Quem não teve? Quem não guardou uma bebida com expectativa? Lembro o meu avô que mantinha uma Espuma de Prata fechada em cima da televisão.
Se ele estivesse vivo, Leônida Carpi, hoteleiro de Guaporé, abriria a garrafa para homenagear o fim da série.
Diria em meu ouvido, que chegou a hora, que viajei parelho a Brizola, que ganhei sapiência de estrada.
- Chuta as pedras, meu neto, o chão implica com quem não anda.
Testemunhei situações inesquecíveis. Dona de casa em Nova Bréscia preparava uma canja e, de repente, entrou galinha pelas janelas, pelo teto, pela porta. Ela saiu correndo, com forte sotaque italiano, gritando em nossa direção:
- Chuva de galinha, meu Deus do Céu, chuva de galinha!
Tinha mais penas do que folhas nas árvores, mais do que qualquer guerra de travesseiros entre os meus irmãos. Bichos presos no telhado, nas forquilhas dos galhos, nos capôs dos carros.
Ela demorou a entender que não era o Juízo Final, mas um caminhão que derrapou na curva e derrubou os caixotes com os frangos sobre sua residência.
Sempre acabo rindo antes de terminar de contar a lembrança. Conto para me ouvir rir.
Descobri o chimarrão mais rápido do mundo, descobri um adolescente com o maior pé do Brasil em Santo Ângelo, descobri o barqueiro de Itaqui, descobri o empalhador de cachorros de Carazinho, descobri o macaquinho sapeca de Iraí, uma coleção de fuscas em Joia, a pedra lunar de Bagé, o ambulante de Victor Graeff que pagou a universidade de seis filhos vendendo rapaduras.
Houve igualmente travessias amorosas. Depois de 30 anos, abracei de novo minha babá Neide em São Valentim do Sul. Também por curiosidade, reconstitui a infância de minha mulher em Constantina. E ainda enfrentei desafios: suportar o banho gelado e invernoso na praia de Quintão, apesar da asma, e subir os 39 metros do Farol de Mostardas, apesar da vertigem.
Andei de cavalo, de hipopótamo, de colheitadeira, de caminhão de boia fria. Rolei fenos, percorri cavernas com tochas, larguei muita gente sem entender meus óculos de mosca.
A saudade me corrompe.
A saudade me estraga.
A saudade me perturba.
Carrego o mapa com os pontos azuis das cidades visitadas de Beleza Interior. É minha relíquia. Dobro o mapa como um jeans fiel, uma camisa predileta, uma bandeira.
Sou um outro autor, um outro escritor, um outro jornalista. Fui convertido ao bairrismo.
Encontrei onde mora a Felicidade.
Beleza Interior
"Nasci pela segunda vez. E, de novo, gaúcho"
Última reportagem da série faz balanço dos 14.590 quilômetros percorridos por Fabrício Carpinejar no Estado
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